Por que você não volta para sua casa, para sua terra?
De acordo com determinadas mulheres migrantes, em particular haitianas e venezuelanas, mas também de outras nacionalidades, é com essa pergunta que muitos brasileiros ou brasileiras as abordam nos locais de trabalho, de moradia ou na rua. Pergunta que, como tantas outras, emerge nos lugares de destino, escondendo quase sempre boa dose de discriminação, de xenofobia, de preconceito e de temor... para não falar do racismo puro e simples. Pergunta que, além disso, desconhece tantos rostos desfigurados, tantos corpos cansados e tantas almas feridas por longa travessia. Travessia que, em lugar de julgamentos imediatos e precipitados, exige um olhar de atenção e cuidado, junto com um coração disposto à escuta.
Cabe sublinhar que a pergunta dissimula, mal e maldosamente, um rechaço bastante generalizado por todas as sociedades que recebem migrantes. Desencontro que, não raro, vem formulada de outra forma, bem menos sutil e mais declarado: o que você veio fazer aqui? Por que não ficou com seu povo? Por que nos incomodar? Pior ainda: "esta terra é nossa, não lhe pertence"! “Cada um na terra em que nasceu”! Multiplicam-se esses olhares cruzados, oblíquos e enviesados, os quais, ao mesmo tempo, velam e revelam, sinais de intolerância e intransigência. Atitudes que, com certa frequência, desdobram-se em palavras, ações e gestos negativamente afiados, agressivos e ameaçadores, chegando às vias de fato.
Semelhantes dedos em riste, apontados para quem vem "de fora", criminalizam o próprio ato de migrar. O medo dos "de dentro", consciente ou inconscientemente, se bate com a coragem e a esperança do outro, do estranho, do diferente. O encontro e a possibilidade do diálogo acabam sendo substituídos pela barreira que se estabelece entre o grupo dos "nossos" e o grupo "deles". Em lugar de comunidades abertas, formam-se guetos fechados, hermeticamente cerrados a qualquer tipo de comunicação. Espécie de "bolhas" isoladas que, com certa frequência, acabam se convertendo em terreno propício para hostilidades e ódios de ambos os lados. Tensões que permanecem subterrâneas, mas vivas, e que, a qualquer momento e por qualquer coisa, podem explodir em conflitos explícitos.
Dessa forma, levanta-se um obstáculo ao aprendizado e enriquecimento mútuos. Descarta-se desde logo o "outro", como uma fonte e uma oportunidade de crescimento. De acordo com a Doutrina Social da Igreja, no coração de cada pessoa e no coração de cada cultura existem sementes do Verbo. O que significa que o outro é um lugar teológico e espiritual de valores e de riqueza. Fechar-se ao encontro e ao diálogo com ele, é renegar essa nascente de água viva que vem de lugares e povos distintos e plurais. Longe de nos empobrecer, o migrante nos enriquece na exata medida em que estivermos abertos ao confronto, à depuração e à purificação de nossa própria cultura, esta também, como as demais, marcada por anjos e demônios, por joio e trigo, por valores e contravalores.
Mas não é só isso. Ao longo da história, não poucas civilizações devem seu desenvolvimento ao aporte e à contribuição dos grandes deslocamentos humanos e dos migrantes. Estes, de fato, até mesmo por sua energia jovem e entusiasta, podem representar sangue novo em sociedades que caminham a passos largos para o declínio e a decadência; ou então podem constituir oxigênio primaveril em organismos que descambam de forma irreversível para o outono. Rechaçá-los, sem mais nem menos, equivale a perder a capacidade de renovação, de uma verdadeira e positiva metamorfose. A presença do outro sempre questiona e interpela, fazendo emergir perguntas que desencadeiam o mecanismo dinâmico da própria identidade, nossa e dele. A mobilidade humana entrelaça e tece relações novas e inéditas.
Nessa perspectiva, migrantes e migrações, em vez de problema, perigo ou ameaça, podem ser antes sinal de real e efetiva oportunidade. Oportunidade de interação, intercâmbio e crescimento recíproco. Disso decorre a insistência do Papa Francisco no sentido de "superar a globalização da indiferença pela cultura do encontro, do diálogo e da solidariedade". Conclui-se que, ao invés de perguntar "por que você não volta para sua casa, para sua terra" – dever-se-ia perguntar "o que você tem a nos dizer"? Com isso, poderia abrir-se o grandioso e evangélico serviço da escuta. Somente essa escuta atenta e cuidadosa, qualificada e ativa, converte-se em bálsamo para a cura de chagas e feridas e, contemporaneamente, soma e multiplica nomes e histórias, laços e abraços, saberes e valores, amizade e fraternidade.
Pe. Alfredo J. Gonçalves
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