Pilares da Opção Preferencial pelos Pobres
A “opção preferencial pelos pobres”, particularmente um dos legados do Concílio Vaticano II, assentava-se de maneira especial sobre quatro pilares: Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), Teologia da Libertação (TdL), Pastorais Sociais e Movimentos Populares. Antes de prosseguir, é desnecessário relembrar que sua herança original e genuína, na verdade, tem raízes na Palavra de Deus, Antigo e Novo Testamentos. Uma profunda espiritualidade e/ou teologia do chamado “credo histórico” do Povo de Israel (Dt 26,5-10; Ex 3,7-10), por um lado, em confronto com o “resumo das atividades de Jesus” (Mt 9,35-38), por outro, bastaria para darmo-nos conta de que Iahweh, ao mesmo tempo, é o Deus dos pobres e do caminho. Mas vamos aos quatro pilares assinalados, discorrendo algumas linhas sobre cada um deles.
As Comunidades Eclesiais de Base representaram, por algumas décadas, o terreno fértil onde a Palavra de Deus era lida, rezada e meditada. A fé e a vida, Bíblia e realidade andavam de mãos dadas, uma questionando e interpenetrando a outra. Enquanto, por uma parte, a luz dos textos bíblicos iluminava a dura realidade socioeconômica e político-cultural, por outra, essa mesma realidade abria novos horizontes à leitura da Palavra. O resultado disso era a busca de soluções que pudessem transformar a situação dos mais abandonados e indefesos. As novenas de Natal, o material da Campanha da Fraternidade (CF) e os círculos bíblicos para várias ocasiões, entre outras iniciativas eclesiais, constituíam os momentos privilegiados para esse intercâmbio duplamente enriquecedor. Ao mesmo tempo que a realidade histórica era fecundada pelo texto bíblico, sempre vivo e ativo, a Palavra ganhava interpretações cada vez mais comprometidas com mudanças profundas, estruturais, da própria formação econômica e social do contexto em que vivia a população. O mesmo vale para a defesa dos direitos humanos e da preservação do meio ambiente, “a nossa casa comum”.
A Teologia da Libertação, por sua vez, constituía o marco crítico e orientador dessa práxis dos cristãos nas CEBs. Novamente aqui, teoria e prática andavam de mãos dadas, uma interpelando e deixando-se interpelar pela outra. Falava-se então de um “círculo hermenêutico”, ou “círculo virtuoso”. A Palavra de Deus iluminava a situação real e concreta, digamos o contexto histórico (1); este, se e quando devidamente iluminado, revelava a complexidade de suas incongruências, injustiças e contradições, desencadeando uma ação prática libertadora sobre a realidade. A ação transformadora modificava algo na vida concreta, levando ao contexto histórico (II). Novamente iluminado pela Palavra de Deus, este último voltava a revelar novas desigualdades e fraturas de ordem social, econômica e política, o que incentivava novas atividades libertadoras, as quais, por seu turno, conduziam a um novo contexto histórico (III). E assim sucessivamente!... A dialética entre a práxis libertadora e a reflexão teórica, uma questionando e enriquecendo a outra, fundia-se num processo consciente de organização e mobilização. Nesse processo, muitas melhorias foram surgindo, ao lado de uma pressão constante sobre os poderes públicos.
As Pastorais Sociais, a partir dos anos 1970-80, também atuavam nesse terreno sempre irrigado pela Palavra de Deus. Tanto neste caso como nos parágrafos anteriores, o método usado seguia de perto o VER-JULGAR-AGIR, cuja origem vinha da Ação Social Francesa. Cada uma dessas pastorais mantinha o olhar atento sobre uma situação social ou sobre uma categoria de pessoas onde a vida se encontrava mais ameaçada. Emergiram, dessa forma, a pastoral junto aos povos indígenas, à realidade agrária e agrícola, aos migrantes internos e estrangeiros, à saúde, aos pescadores, aos menores abandonados, às crianças desde a concepção até os seis anos, ao povo de rua, aos operários, à mulher marginalizada, aos encarcerados, ao povo afro-brasileiro, e assim por diante. Não raro, a cada tema da CF, organizava-se uma nova Pastoral Social, sempre atenta a um grupo e/ou situação bem específica. A vantagem dessas Pastorais Sociais é que atuavam em nível local, regional e nacional, rompendo com as estruturas muito rígidas das paróquias e dioceses. No mundo urbano, em especial, semelhantes divisões de caráter marcadamente rural, às vezes feudal, praticamente se esfacelam.
Os Movimentos Populares – e aqui, por motivo de opção e de espaço, temos consciência que estamos deixando de lado o movimento sindical, feminino, ambiental, estudantil, acadêmico e intelectual de uma forma mais abrangente – nasceram e se consolidaram sobre carências vívidas e concretas da população de baixa renda. São múltiplos e bem diferenciados, embora com certas características similares. Irromperam e vieram à tona no campo e na cidade: movimento pela conquista da terra e por uma política agrícola em favor do pequeno produtor, pela moradia, pelo emprego, por infraestrutura (asfalto, luz, água, esgoto, etc.), por escola e creche, pelos direitos humanos, por ambientes de esporte e lazer!... Estava em jogo, como se pode verificar, uma reivindicação por políticas públicas sólidas e estruturais, no sentido de defender os setores mais periféricos e empobrecidos. Alguns se tornaram emblemáticos e ganharam repercussão nacional e mesmo internacional, tais como as greves dos metalúrgicos do ABC paulista, a greve dos bóias-frias no interior de São Paulo, o movimento das panelas vazias, o saque de supermercados devido à fome, o movimento dos trabalhadores rurais sem terra!... E muitos outros que se ramificaram, se fortaleceram e se espalharam por todo país.
Esses quatro pilares – CEBs, TdL, Pastorais Sociais e Movimentos Populares – tinham como primazia a “opção preferencial pelos pobres”. Estes últimos eram chamados a ser sujeitos e protagonistas do próprio destino, artífices das mudanças que haveriam de trazer melhorias em sua história pessoal, familiar e coletiva. Representavam verdadeiros igarapés que, no decorrer dos anos de 1970-80, convergiram para engrossar as águas de um grande rio, o qual, no bojo da travessia da ditadura para a democracia, haveria de nos levar às eleições diretas e universais. A década de 1990 e início da década de 2000, por outro lado, foram fortemente marcados pelos debates das Semanas Sociais Brasileiras, pelo Grito dos Excluídos, pela Campanha Jubileu Sul, pelo Tribunal da Dívida e pelos Plebiscitos Populares – iniciativas que mobilizaram centenas de milhares de agentes e milhões de cidadãos e cidadãs.
No centro dessa imensa rede de igarapés encontrava-se o pobre historicamente mutilado, ao lado da opção decisiva por suas penas e lutas, sinhôs e utopias. Opção que, se é verdade, ganhou vigor através do Concílio Vaticano II, também é certo que adquiriu maior especificidade e mais concretude nas Assembleias do Episcopado da América Latina e do Caribe. Igualmente ao lado do pobre, excluído, vulnerável e descartável, limitando-nos agora ao Brasil, um punhado de bispos hoje amplamente reconhecidos, pastores por excelência, e uma multidão de padres, religiosos, religiosas e agentes pastorais leigos/as conseguiram fazer com que a voz dos silenciados e silenciosos se convertesse na voz da própria Igreja. A palavra viva e a fé profética, tal qual “facas afiadas de dois gumes” (para usar uma expressão bíblica) penetraram no coração da própria CNBB. E esta, oportuna e pertinentemente, foi capaz de potencializar o profetismo individual e transformá-lo em profetismo coletivo. Convém jamais esquecer que o profetismo individual goza de maior prontidão e rapidez na denúncia, enquanto o profetismo de instituição tende a chegar atrasado, devido às instâncias burocráticas envolvidas.
Bastaria trazer aqui dois desses documentos que fizeram história e tornaram-se referência para a prática e a teoria dos cristãos brasileiros: “Eu ouvi os clamores do meu povo”, texto publicado em 1973 pelos bispos do Nordeste, anos de plena ditadura militar, que além de marcar época, desencadeou atitudes de perseguição por parte do governo. Também foi tido como marco referencial, seja para outros regionais da CNBB, seja para a própria Conferência Episcopal; no mesmo ano e mesmo contexto político de 1973, por ocasião do Natal, um grupo de bispos e missionários elaborou uma espécie de documento/manifesto de urgência como o título “Y Juca Pirama. O índio: aquele que deve morrer”. Como podemos notar, até os dias de hoje, a situação dos povos indígenas segue extremamente precária, para não falar de outros rostos visíveis ou invisíveis. Ponto final: por que, hoje, falar de CEBs, TdL, Pastorais Sociais e Movimentos Populares faz arrepiar boa parte dos católicos e/ou cristãos?
Pe. Alfredo J. Gonçalves
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