Vida religiosa consagrada e "terceira personagem"
Um dos aspectos constitutivos da Vida Religiosa Consagrada (VRC) tem a ver com o tempo dedicado ao desenvolvimento de uma espiritualidade sólida e permanente. Momentos de oração, de meditação e de contemplação. Ademais da convivência comunitária e da missão apostólica, o cultivo de uma intimidade com Deus, particularmente por meio do seguimento de Jesus Cristo, faz parte de sua razão de ser. O processo desse caminho espiritual – sempre longo, laborioso e cheio de obstáculos – “tropeça” normalmente como aquilo que podemos chamar de terceira personagem. Em outras palavras, na oração a sós com Jesus, revelador do Pai, este costuma introduzir uma nova realidade e/ou rosto às vezes estranho e desconhecido, outras vezes já bem familiar. Ou seja, na busca do totalmente Outro, ele conduz ao outro-diferente-estrangeiro. A oração devolve à realidade concreta em que “vivemos, nos movemos e somos”.
Alguns exemplos bíblicos ilustram essa irrupção da terceira personagem no percurso místico do consagrado ou consagrada. Comecemos com o episódio da sarça ardente (Ex 3, 1-10). Moisés se encontra dividido: de um lado, teme os soldados do Faraó que o procuram para reparar o crime cometido contra um egípcio; de outro, conhece bem a opressão, o sofrimento e o clamor de seu povo escravo naquela terra estrangeira. O que fazer? Entregar-se e correr o risco de perseguição ou morte, ou seguir oculto como modesto pastor? A figura simbólica da sarça ardente reflete, no fundo, a chama viva que arde na consciência e no coração de Moisés. Por isso, pastoreando o rebanho, decide subir à montanha para encontrar-se com Deus. O medo e a coragem, a dúvida e o compromisso se debatem em seu interior.
O episódio como um todo pode ser considerado um poema sobre a oração. Angustiado e sem saber como proceder, Moisés dirige-se ao Senhor. Não lhe saem dos ouvidos os gemidos dos irmãos no trabalho forçado; tampouco lhe sai dos ombros o peso do poder faraônico. Impossível permanecer no deserto, na condição de pastor, como se nada tivesse acontecendo. Daí que em pleno encontro com Deus, irrompe o “imperativo categórico”, para usar a famosa expressão de Kant: “Eu te envio ao Faraó para tirar do Egito o meu povo, os filhos de Israel”! Na intimidade entre o Senhor e Moisés, este se depara com a terceira personagem, isto é, o povo escravo em terra estrangeira. A oração sincera, profunda e verdadeira não se limita a um diálogo místico com Deus, mas devolve o orante à realidade de onde havia se esquivado.
O segundo exemplo nos vem justamente do profeta fujão, tão parecido com cada consagrado ou consagrada. Jonas é enviado à cidade de Nínive, na tentativa de convertê-la ao Senhor (Jn 2, 1-11). Missão duplamente impossível, pensa o profeta! Nínive, além de cidade estrangeira, não passa de um covil de pecadores. Jonas empreende uma fuga que vai num crescendo: deixa a face de Deus; deixa o porto da cidade; já em alto mar, e dizendo-se culpado pela tempestade, abandona o grupo de marinheiros; e por fim, nas águas profundas acaba engolido por um grande peixe, como se quisesse anular-se, voltar ao ventre materno, nem querer ter nascido. Da mesma forma que no caso anterior a sarça ardente figurava o coração de Moisés em chamas, aqui a tempestade reflete as turbulências na alma de Jonas. Em lugar de dirigir-se a Nínive, a cidade do pecado e do mal, melhor desaparecer de tudo e de todos.
No ventre do peixe, não tendo mais para onde fugir, Jonas põe-se a rezar. “Na minha angústia invoquei o Senhor (...); do fundo do abismo, pedi tua ajuda”. Mas aqui também, no auge de sua consciência e do pedido de socorro a Deus, irrompe a terceira personagem, ou seja, a cidade de Nínive, a grande pecadora e prostituta: “Então o Senhor mandou que o peixe vomitasse Jonas em terra firme”. Ironia do destino, retorna exatamente ao ponto de onde havia escapado. O amor de Deus é universal, não tem fronteiras; e o israelita empedernido que é Jonas, representante de um nacionalismo discriminatório e xenofóbico, deve exercer seu ministério onde menos havia esperado. Uma vez mais, a intimidade com Deus por meio da oração, devolve o orante à missão da qual pretendia fugir. A cidade estrangeira e odiada de Nínive figura como o outro/estranho para onde nos envia o totalmente Outro.
Passemos ao Novo Testamento. Um doutor da lei procura Jesus. Este certamente o atrai não só pelo que ouvira a seu respeito, mas sobretudo porque está cercado de uma espécie de aureola divina. A expectativa em torno do Messias durava séculos em Israel, e parece ter-se acentuado nas últimas décadas, marcadamente apocalípticas. Quantas vezes o especialista em leis já não manifestara a vontade de conhecer esse estranho que se diz Filho de Deus! Na dúvida, não custa conversar com aquele que alguns insistem ser o verdadeiro Messias. Então, o homem da lei se aproxima e faz a pergunta que, com frequência, outros já lhe haviam dirigido anteriormente: “Mestre, o que devo fazer para receber em herança a vida eterna” (Lc 10, 25-37).
Provavelmente, o doutor pretende desenvolver uma temática doutrinária, teológica. Quem sabe elevar ao nível espiritual o tom do diálogo. Não deixa de ser um passo de espiritualidade, uma vez que correm notícias de que ele é o enviado de Deus. Ao aproximar-se do mensageiro que vem do alto, o especialista como que entra em estado de oração. Mas, ao que parece, o Mestre frustra seus planos e intenções. Desloca o núcleo da conversa, talvez com a intenção de conferir maior realismo e concretude tanto à pergunta quanto à resposta. Fato está que Jesus procede a uma transformação tríplice e pedagógica. Modifica de maneira radical a atmosfera e o ambiente do diálogo: da área do templo onde ambos deveriam encontrar-se, sai para o cotidiano da rua; em lugar de priorizar o âmbito religioso, põe em relevo um drama socioeconômico; troca o tema teológico-espiritual por uma emergência de caráter sociopastoral.
De forma imprevista, irrompe no diálogo a terceira personagem, quer dizer, o homem caído à margem da estrada, bem como à margem da vida, se nada for feito. É como se o Mestre tivesse tomado o doutor pela mão, fazendo-o seu provisoriamente discípulo, para mostrar-lhe um outro ângulo da preocupação apresentada. Numa palavra, a resposta não está no interior do templo, não se resolve em nível religioso, ultrapassa a esfera da espiritualidade. Dessa vez, igualmente, a oração devolve o orante à rua, ao dia-a-dia de quem se encontra a caminho e sofre as surpresas da estrada. Ali é que se decide a salvação. Esta não consiste em uma tarefa unicamente pessoal. Ao contrário, subordina-se à relação comportamental para com os outros, de modo todo especial os pobres, excluídos, descartáveis – se quisermos, os estrangeiros.
Em síntese, o homem caído e ferido à beira do caminho, roubado em seu direito à vida, torna-se critério de salvação. Dependendo da maneira como a pessoa se comporta diante de determinada situação específica, que requer cuidados imediatos e particulares, abre-se ou não o caminho da vida eterna. Vida eterna que, se é verdade terá sua plenitude após a passagem pela face da terra, também é certo que mergulha suas raízes na vida e na ação presentes. Vida eterna que se resume a esses momentos tão marcantes e tão significativos da trajetória pessoal e/ou coletiva. Gestos eternamente gravados, com caracteres de ferro e fogo, no pergaminho da história. Tempestade alguma, para todo sempre, poderá apagar os sinais vivos do amor. Nem vento, nem fúria, nem tormenta poderão jamais varrer essas marcas de compaixão e solidariedade, que deixam suas pegadas indeléveis no mármore dos tempos.
De resto, é esse o tema do chamado “juízo final”, relatado pelo evangelista Mateus. Diante da solicitude para com os rostos feridos e desfigurados, diz o texto: “Pois eu estava com fome (...) eu estava com sede (...) eu era estrangeiro (...) eu estava sem roupa (...), eu estava doente (...) eu estava na prisão”!... E vocês vieram em meu socorro, não me deixaram só nesta hora difícil. Ao contrário, ofereceram seus braços para que eu pudesse levantar-me, manter-me de pé... E assim retomar o caminho com minhas próprias energias. “Eu vos garanto, todas as vezes que fizestes isso a um dos menores de meus irmãos, foi a mim que o fizestes (Mt 25, 31-46).
Pe. Alfredo J. Gonçalves
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