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Um olhar sobre a bolsonarização das Igrejas no Brasil

Há 3 anos
O vírus do bolsonarismo contaminou a partir de desejos de poder e ressentimentos e do reforço a ideologias políticas antidireitos, articulados ao longo de décadas
O vírus do bolsonarismo contaminou a partir de desejos de poder e ressentimentos e do reforço a ideologias políticas antidireitos, articulados ao longo de décadas (foto por Folha Gospel)

Estudo as igrejas evangélicas no Brasil há quase trinta anos. Antes disso, desde adolescente, vivi o “ser evangélico” e suas transformações, como membro na Igreja Metodista, depois como liderança estadual e nacional. Amadureci meu olhar no movimento ecumênico e como assessora de projetos de uma organização que atuava em processos informativos e educativos com as diferentes igrejas. Quando decidi entrar no campo do estudo e da pesquisa, dei substância a estas bases e ampliei o olhar.

São, portanto, mais de 40 anos vivendo, aprendendo e expondo ideias sobre este grupo religioso que saiu de um predominante, mas não exclusivo, isolamento social para um protagonismo sem precedentes. É fato que há toda uma memória de inserção evangélica no campo da educação e em diferentes tendências políticas por décadas, como temos exposto aqui neste espaço, por meio de diversos artigos.

As transformações paradigmáticas têm data: os anos 90 com a configuração do que eu chamo de cultura gospel. Ela é um tecido formado por vários fios: explosão cultural com base no mercado da música e derivativos, e no entretenimento religioso, mediada pela ocupação de espaços das mídias e da política partidária.

A unanimidade, não planejada, do jeito de ser foi recomposta com ares de modernidade. Ela havia sido costurada com a entrada deste grupo religioso no Brasil, a partir do século 19, por missionários das igrejas tradicionais dos EUA, e depois, com pentecostais suecos e estadunidenses, materializada no fundamentalismo, no pietismo, na anticultura nativa, no anticatolicismo e no antiecumenismo. A recomposição veio nos anos 90 com tecnologia, novos ritmos musicais, show business, surgimento de celebridades religiosas, relativização das doutrinas e do papel das autoridades clássicas em nome da ideologia/teologia avivalista, e o reforço ao discurso de que “o Brasil será do Senhor Jesus”.

Tudo isto ancorado nas teologias da Prosperidade e do Domínio, da Confissão Positiva, da Guerra Espiritual, devidamente sintonizadas com o contexto sociopolítico da época: o predomínio do capitalismo globalizado e a configuração da sociedade da informação/comunicação.

A cultura gospel homogeneizou conteúdos, padronizou a forma de cultuar a fé, superficializou o que se chamou no passado “educação cristã” e criou um discurso e uma linguagem únicos. Entrar em uma Igreja Metodista ou Presbiteriana passou a ser o mesmo que entrar em uma igreja pentecostal Assembleia de Deus, Renascer em Cristo ou com nomes os variados, guardadas as peculiaridades de uma ou outra comunidade de fé. A mesma forma de cultuar, o mesmo discurso, as mesmas teologias, até mesmo ajustes na forma de pastorear (liderar) para a adoção da mesma cultura organizacional.

Passei anos escrevendo sobre este fenômeno, relacionando-o à ampliação da ocupação deste grupo na política institucional nos anos 2000. Os evangélicos passaram a projetar a ocupação de todos os poderes da República, e não apenas do Legislativo, como vinha ocorrendo desde os anos 80.

Os anos 2000, especialmente no fim da primeira década, trouxeram o avanço de novas faces do fundamentalismo, em especial as pautas antidireitos de gênero, com acumulação de poder por pastores midiáticos antigos e novos, eleitos ou não para cargos públicos. Na trilha do conservadorismo católico romano, evangélicos abraçam a falsa noção de “ideologia de gênero”, com produção do terrorismo verbal e pânico moral, que deram palco a novas personagens religiosas que emergiam do campo do Direito para assessorar políticos.

Como em outros momentos, houve a afinidade com o contexto social reacionário antidireitos que explodiu em 2013. Foram reforçados pessoas e grupos, no interior das igrejas, que se colocam contra os direitos humanos, contra a causa das mulheres, contra imigrantes (nordestinos e estrangeiros), defensores do intervencionismo militar e estadunidense. Estes evangélicos “saíram do armário” e assumiram posturas mais agressivas, violentas e grosseiras.  São posturas que contrariam fortemente a imagem histórica dos evangélicos como pessoas cordiais e educadas. Da mesma forma, emergiram práticas que reproduzem o desprezo às ações sociais críticas ao sistema e o desmonte de instituições de educação, marcas também históricas da presença evangélica no Brasil.

Neste contexto, o deputado Eduardo Cunha tornou-se presidente da Câmara dos Deputados, em 2015, e exerceu todo o seu poder para catapultar estas pautas defendidas pelo grupo religioso que ganhava hegemonia e para fazer acontecer o golpe que levou ao impeachment da presidenta Dilma Rousseff.

Com isso, ganhou força o bolsonarismo, tendência política que pode ser reconhecida no Brasil desde os tempos da colônia, com o patriarcalismo, o autoritarismo, o racismo e o poder do latifúndio. Quando esta tendência ganha tal força, cuja conquista não se deu pela coerção física, com armas ou tanques, mas com a articulação de imaginários e ressentimentos, a mesa foi posta para Jair Bolsonaro chegar ao poder maior do país. E ele o conquistou, com a ajuda das lideranças político-religiosas, eleitas ou não, majoritariamente de evangélicos e católicos, mas também de judeus, islâmicos e espíritas. [Sobre as religiões não-cristãs neste processo recomendo a leitura do livro organizado pelo Prof. Claudio Ribeiro, “Diversidade Religiosa e o Princípio Pluralista” (Editora Recriar, 2022) e os textos da Plataforma Religião e Poder do Instituto de Estudos da Religião (ISER) www.religiaoepoder.org.br, em especial os de Michel Gherman, Franklin Félix e Eduardo Freitas].

Esta postura política, agora liderada por Bolsonaro e seus filhos, sob a ideologia do olavismo, reuniu elementos daquele clima de quase duas décadas com ingredientes religiosos, colhidos da base estabelecida por Eduardo Cunha e apoiadores. O articulador Olavo de Carvalho foi um dos responsáveis pela captura de corações e mentes não pensantes, afeitos a posturas bélicas e ofensivas e à demonização de opostos, em especial as esquerdas. A fórmula alcançou o imaginário evangélico de que o “Brasil será do Senhor Jesus” contra supostos inimigos das famílias e das igrejas, isto é, feministas, LGBTI+, defensores de direitos humanos, esquerdas-comunistas. Ou seja: antipetismo + antipolíticos e antipolítica + “guerra cultural” (pessoas de bem vs. esquerdas-comunistas).

Estava alavancada a bolsonarização das igrejas que, dados os múltiplos exemplos de declaração de fidelidade, obscurantismo e de incorporação de símbolos do bolsonarismo (armas, excessivo uso do verde-amarelo e de gestos militares), ganhou requintes de fanatismo.

A carga de ódio, mentiras e negacionismos de toda sorte embutida na campanha que levou Bolsonaro à eleição foi amplificada nos anos em que está no governo. A sua aliança incondicional com o agronegócio e o empresariado selvagem, refletidas no armamentismo, na destruição do meio ambiente, na carestia geradora de miséria e fome, e nos mais de 620 mil mortos pela covid-19, demostram isto e fizeram este apoio arrefecer.

No entanto, há um núcleo evangélico que permanece fiel ao bolsonarismo. Com a iminente derrota eleitoral diante da desgraça sociopolítica e econômica que se abateu sobre o país, há lideranças evangélicas que reafirmam o apoio (levam um dos filhos do presidente a pregar em um dos púlpitos, reproduzem mentiras contra adversários, criam discursos sobre “o pecado de ser de esquerda”) e outras silenciam denotando consentimento.

Outro retrato da fidelidade de evangélicos ao bolsonarismo é a migração de apoio de lideranças para a candidatura do ex-juiz Sérgio Moro. Se Bolsonaro se tornou modelo do bolsonarismo sem civilidade, de gente rude e belicosa, Moro é o bolsonarismo de gravata, moralista, da mesma antipolítica mas com ar superior, da classe média que “posa de rica” e defende a “justiça para todos” desde que seja só para ela. A messianização da Operação Lava Jato, sobre a qual já escrevi neste espaço, https://www.cartacapital.com.br/blogs/dialogos-da-fe/o-messianismo-perverso-da-lava-jato/ produziu apoiadores a este tipo de bolsonarismo, agora encarnado pelo ex-juiz, ancorado na falsa imagem de paladino “anticorrupção”.

Como exposto aqui, o vírus do bolsonarismo não infectou as igrejas por acaso. Ele as contaminou a partir de desejos de poder e ressentimentos e do reforço a ideologias políticas antidireitos, articulados ao longo de décadas. O que temos visto, porém, são atitudes e concepções contrárias aos valores cristãos do amor, da misericórdia, do despojamento, da tolerância, da solidariedade. É um movimento político que não se mostra compatível com o “ser cristão”, em qualquer igreja, como aprendi na minha trajetória, descrita cima. E isto não diz respeito apenas a ser de direita ou conservador, mas, sim, à negação da humanidade e da democracia, em nome de um extremismo e de um autoritarismo que transformam uma “casta” de evangélicos em soldados de um exército maligno.

 

(Este artigo foi publicado originalmente pela revista Carta Capital, em 2 de fevereiro de 2022)

Sobre o autor

Magali Cunha

Jornalista e doutora em Ciências da Comunicação. É pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião (ISER) e colaboradora do Conselho Mundial das Igrejas. É articulista da revista Carta Capital, respondendo pela coluna Diálogos da Fé. É também editora-geral do Coletivo Bereia – Informação e Checagem de Notícias.