O Natal é das Marias, das Odjas, e sua mania de ter fé na vida
Dias atrás vivemos a experiência de passar rapidamente de um sentimento de júbilo e orgulho para o de indignação e solidariedade, com os episódios que envolveram a pastora Odja Barros, da Igreja Batista do Pinheiro (Maceió/AL).
O momento de alegria deu-se por conta da boa reportagem em grande mídia digital sobre a pastora ter oficiado o primeiro casamento entre duas mulheres, celebrado por uma autoridade religiosa em Alagoas. Odja tem 28 anos de pastorado e tem atuado, há muitos anos, ao lado do esposo, também pastor, Welinton Santos, em uma vertente da Igreja Batista, uma das igrejas evangélicas tradicionais do Brasil, que abraça uma teologia libertadora, comprometida com a causa dos direitos humanos, incluindo os das mulheres e das pessoas LGBTI+.
A união homoafetiva aconteceu em um salão de festas da capital alagoana e não foi o primeiro casamento entre pessoas do mesmo sexo realizado por pastores no Brasil. No entanto, ganhou destaque por ser a primeira cerimônia celebrada por uma mulher, que em muitas igrejas da tradição batista sequer podem atuar como pastoras.
Poucas horas depois da repercussão da reportagem, quem acompanhava o caso se surpreendeu com a divulgação de uma ameaça de morte contra a pastora. Um homem, que dizia ser cristão, enviou áudios pelos quais ameaçava matar a pastora por ela ter celebrado o casamento homoafetivo. O agressor também enviou fotografias em que colocava uma Bíblia ao lado de uma arma, reforçando a motivação para as ameaças.
“Ele disse que ia me matar, que iria atirar na minha cabeça. Disse que sabe onde estou e quem são as pessoas próximas a mim. Isso ultrapassou o que eu, até então, estava administrando de mensagens de ódio”, declarou a pastora. Odja Barros e a família formalizaram denúncias nas instituições competentes em Maceió e receberam muitas mensagens de apoio e solidariedade tanto de lideranças e organizações religiosas quanto de grupos que atuam por direitos.
Ainda sob o impacto destes episódios, não tive como não relacioná-los a este período de preparação para o Natal, data religiosa significativa. Ela tem o bebê Jesus, o Deus feito carne, segundo a fé cristã, como personagem principal, mas tem também uma mulher: Maria, aquela que deu à luz o menino.
Evangélicos não veneram Maria. Esta é uma das grandes diferenças entre as doutrinas evangélica e católica. Para os evangélicos, Maria é uma das tantas personagens, narradas nos textos da Bíblia, que participaram do projeto redentor de Deus para o mundo. Foi especial por ser conhecida como aquela que foi escolhida por Deus como mãe de Jesus.
No Brasil, o caráter de minoria religiosa do segmento evangélico e sua postura predominantemente anticatólica, tornou seus princípios de fé ainda mais redutores da figura de Maria. Ela é raramente lembrada em pregações, na educação religiosa, à exceção do Natal (data em que aparece com maior destaque) e em algumas situações na Páscoa.
No entanto, nas últimas décadas, a leitura bíblica desenvolvida por teólogas evangélicas e católicas junto com participantes das comunidades cristãs espalhadas Brasil afora, tem recuperado o lugar das mulheres na história da fé cristã. E estas leituras vão redescobrindo como a figura de Maria é inspiradora para cristãs e cristãos e também para todas as pessoas.
Maria era de Nazaré. Não era da capital ou de uma grande cidade, mas de um lugar periférico, pequeno. Por isto ela sabia muito bem o que era pobreza, discriminação. Ser pobre, de Nazaré, e ser mulher não era fácil! E ao entrar para a história como mãe de Jesus, Maria era ainda uma adolescente, aprendendo a lidar com as dores do ser mulher. Porém, ela misturava tudo isto com alegria.
As narrativas bíblicas contam que Maria canta o júbilo de participar do plano de Deus, trazendo Jesus ao mundo, num momento em que ela teve que fugir para a casa da prima Isabel para esconder a gravidez precoce. Ela sofre, mas tem a alegria por ter tido uma experiência de fé com um Deus que não morava no templo da capital, como os religiosos da época tentavam fazer crer. Ela descobre um Deus que se importa e valoriza todas as pessoas, sem distinção.
O poeta, em sua clássica canção, chama esta atitude de “estranha mania”. Afinal, hoje tudo coopera para que se perca a fé na vida. Violência, negação de direitos, injustiça, discriminação. As ameaças que a pastora Odja Barros recebeu estão neste contexto. Porém, quem tem “manha, graça, sonho”, segundo o poeta, “e mistura a dor e a alegria”, vê e vive a vida de outro modo.
Há muita inspiração que brota de Maria e das tantas Marias que seguem esta trilha. Muitas histórias ao longo dos séculos até chegar aos nossos dias. Mulheres que acreditaram, tiveram força, lutaram por direitos, pela terra, pela democracia e pela liberdade. Elas foram/vão até o fim e dedicam suas vidas em nome da fé na vida. Poderíamos citar tantas na nossa história passada e presente... quem lê este texto pode fazer o exercício de nomear estas “Marias”. Eu contribuo nomeando a pastora Odja, com seu compromisso e sua coragem!
Portanto, neste Natal, aproveitemos para celebrar e aprender com o dom das “Marias”, fonte da “estranha mania de ter fé na vida”.
(Este artigo foi publicado originalmente pela revista Carta Capital, em 22/12/2021)
Magali Cunha
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