Resgatar o sentido cristão do trabalho
O valor do trabalho é bíblico. Portanto, faz parte da tradição judaico-cristã: no livro do Gênesis consta que o destino do ser humano é garantir a própria sobrevivência com o suor do seu rosto. Mais que isso, o trabalho é fundamental para dar continuidade ao projeto de Deus para a humanidade: a construção do Seu Reino No entanto, ao trabalho parece que o escritor bíblico concedeu um sentido negativo, isto é, trabalhar seria um castigo para a humanidade por ter perdido o direito de viver no paraíso.
Essa compreensão cristã do trabalho permaneceu até o advento do capitalismo, fortemente perpetuada pela Igreja ao longo da Idade Média. Por isso, o trabalho era visto como uma atividade inferior, indigna da nobreza, mas reservada aos servos e súditos. De certo modo, essa visão permanece no Ocidente, sobretudo para o chamado trabalho braçal. Além disso, embora talvez não possamos falar de uma visão propriamente econômica (no sentido científico que esse termo possui hoje), a busca do lucro foi comumente identificada com o pecado da usura (entendida como cobrança de remuneração abusiva pelo uso do capital), uma das frequentes razões para a condenação de judeus por cristãos durante esse período.
Contraditoriamente, a Igreja cristã medieval (tanto no Ocidente como no Oriente), por vezes, sucumbiu ao poder político e econômico ao se assumir ao poder civil, favorecendo e se beneficiando do acúmulo de riqueza, muitas vezes, conquistada mediante a promoção da guerra (como foi a Guerra Santa, no Oriente, pela posse de Jerusalém) e a exploração da boa-fé dos mais humildes. É em contextos como esse que emergiram figuras como Francisco de Assis cujo carisma – a pobreza evangélica – buscou levar a própria Igreja a reassumir com coerência a mensagem original de Cristo para quem “felizes são os pobres”.
A Reforma Protestante representou uma revolução no que diz respeito à visão cristã sobre o trabalho e a economia. Aliás, o fato que motivou a revolta de Lutero está diretamente relacionado à exploração comercial da fé das pessoas, com a venda de indulgências. Por outro lado, especialmente sob o ponto de vista de João Calvino – um dos principais protagonistas da Reforma na Europa -, o acúmulo de riqueza (obtido mediante o trabalho justo) representa uma benção de Deus.
Com efeito, pela colonização da América, por exemplo, é possível compreender duas perspectivas bastante diferentes da visão cristã da economia e do trabalho naquele momento histórico. Se olharmos para a colonização protestante (puritana, sobretudo, cuja origem é calvinista) que se deu na América do Norte, observamos a atuação de colonos inspirados na conquista da riqueza como projeto de Deus mediante o trabalho árduo no cultivo da terra. Já a colonização católica na América Central e do Sul (por Espanha e Portugal) é marcada por uma combinação entre uma postura predatória de bens naturais e da agricultura de exportação e a cristianização dos indígenas (cuja escravidão, em certas regiões, foi a verdadeira fonte de riqueza).
Em ambos os casos, se considerarmos amplamente o desenvolvimento da cristianização do continente americano desde então, para além de belos testemunhos de fé, há igrejas, instituições, grupos e pessoas cuja experiência religiosa os aproximou mais do acúmulo de bens do que da promoção da justiça social e econômica. Esse fenômeno, na sua versão mais atual, coincide com o amplo desenvolvimento da mídia tem produzido uma nova maneira de entender e viver a religião. Mais que vender ideias que satisfazem necessidades espirituais, o recente uso do marketing aplicado à religião é um exemplo de iniciativa que, por vezes, foi e tem sido utilizada fundamentalmente para vender produtos.
Outra incoerência flagrante é a tendência de muitos cristãos em desvincular a religião de outros aspectos da sua vida, tais como o trabalho e a economia. Em geral, uma religiosidade pietista, meramente ritual e teologicamente frágil é incapaz de assegurar uma postura profissional coerente com o Evangelho por parte de muitos de cristãos. Os motivos para isso seriam muitos – inclusive, de ordem subjetiva -, mas é possível agregar a essa lista motivações coletivas como a má formação catequética; a pouca (ou nenhuma) formação humana que estabeleça conexões entre a mensagem evangélica e as concepções de trabalho e economia; a falta de referenciais concretos de um profissionalismo cristão, a começar entre líderes clérigos e laicos; discursos e obras sobre essa temática de teor complexo e, por isso, inacessíveis aos fiéis em geral, entre outros.
Há, no entanto, exemplos isolados de grupos e pessoas cristãs que navegam “contra essa maré” na medida em que seu testemunho no âmbito do exercício da profissão e da produção econômica apontam para recuperar uma visão saudável do trabalho e da economia cujo principal fundamento é essencialmente evangélico: por amor a Deus e ao próximo, valorizar a pessoa acima do capital, ainda que isso implique comprometer o progresso econômic
Desenvolvimentos históricos à parte, o fato é que hoje passamos a maior parte do nosso dia, da nossa semana e, portanto, da nossa vida, trabalhando. Por isso, o trabalho que exercemos e como o exercemos (seja este remunerado ou voluntário) diz muito sobre o que somos, sobre o significado que damos para nossa vida e, logo, sobre o quanto conseguimos nos realizar como pessoas e sermos felizes. Acredito que, para além da realização material, esse processo exige a construção de relações de respeito, de diálogo e de fraternidade. A meu ver, o resgate do sentido mais profundamente cristão do trabalho passa por aí.
Por fim, neste Primeiro de Maio, dedico ainda meu silêncio e oração em respeito às milhões de pessoas (mulheres e homens, adultos e jovens, em especial) que estão desempregadas ou vivendo do subemprego, por conta de um sistema social, político e econômico que se mantém à base da exploração humana e de uma postura predatória da vida em geral. E a todos que, mesmo se empregados, sofrem com essa mesma exploração em função de salários indignos, precarização do trabalho e outros problemas que, por sua vez, contribuem com a competição desigual e injusta, a desigualdade social, preconceitos de diferentes naturezas, a ilusão da meritocracia e do consumismo desenfreado, males bastante potencializados com a pandemia de Covid-19. São todos "rostos do Cristo Crucificado e Abandonado" que, de alguma forma, precisamos acolher. Que Deus mesmo nos ajude a dar conta dessa missão. Afinal, a construção do Seu Reino começa aqui e agora e, por uma razão que só Ele mesmo para explicar, também depende de cada um de nós.
Luis Henrique Marques
Jornalista e editor-chefe das revistas Cidade Nova e Ekklesía Brasil, da Editora Cidade Nova. É mestre em comunicação e doutor em história pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e tem pós-doutorado em comunicação pela Faculdade Casper Líbero. Foi secretário da Diretoria da SIGNIS Brasil no triênio 2020-2022 e editor-chefe da Agência SIGNIS. Blog profissional: prof-luis-marques.webnode.com
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