Nunca é cedo para pensar no carnaval
Gislaine Marins
Carnaval é coisa seríssima. Quando tivermos treinado todos os robôs e formos quase todos substituídos por uma máquina inteligente, ainda haverá espaço para uma atividade humana essencial na fábrica da alegria, alimentando esse sentimento que se renova a cada festa e que reverte a ordem estabelecida quando, no auge do carnaval, debochamos da nossa tristeza e desafiamos sem temor a realidade que nos deprime.
Digo carnaval e lembro do choque que levei no último feriado. Havia entrado em uma lancheria para comprar um sanduíche. Havia famílias sentadas às mesas, entregadores de aplicativos aguardando para levar lanches aos clientes, uma atendente no balcão e pessoas na fila para fazerem os seus pedidos. De repente, a porta da cozinha abriu-se e eu vi um robô entrar na sala deslizando sobre rodinhas, levando uma bandeja até a mesa onde um cliente aguardava para ser servido. Dotado de geolocalizador e de sensor de obstáculos, o robô era capaz de desviar das pessoas na fila e posicionar-se diante da mesa certa. Possuía também um sensor de peso, identificando o momento exato em que a bandeja era retirada da base. Neste momento, uma mensagem era dada ao freguês: “não esqueça de apertar o botão para confirmar que recebeu o seu lanche”. Completada a operação, o robô agradeceu e deslizou de volta para a cozinha.
Pensei em Blade Runner: “Eu vi coisas que vocês, humanos, não poderiam imaginar”. O caçador de androides esperava identificar os suspeitos de não serem humanos, descobrindo um sentimento que não fossem capazes de experimentar. O método, porém, era falível, pois o caçador não podia prescindir da sua subjetividade ao avaliar os androides. E os androides tinham aprendido, ainda que na maioria dos casos de maneira rudimentar, a reagir emotivamente, além de agir segundo as instruções programadas.
Ao contrário do antigo Prometeu, hoje não são os humanos que roubam o fogo dos deuses, somos nós que damos “o fogo” aos robôs. E estamos ensinando a usar todos os nossos instrumentos, inclusive a reagir às emoções de maneira coerente. Estamos treinando os robôs para escreverem, traduzirem, comporem música, realizarem imagens e vídeos. Em breve as cirurgias guiadas à distância por médicos serão uma rotina. Hoje os robôs já constroem outros robôs, pois a indústria foi o primeiro laboratório da robotização do trabalho. Os robôs podem fazer até mesmo a guerra, destruindo e sendo destruídos, enquanto um soldado realiza manobras a partir de um joystick bem longe dos campos de batalha.
Os robôs só não capazes de rir espontaneamente, cometer atos falhos, inverter a realidade para valer com os pés no chão, com os cabelos banhados de suor e os braços abertos à alegria. O carnaval exige uma subversão real na vida real. Exige uma pausa nos deveres, na coerência, na previsibilidade e na realidade virtual. Convida à surpresa dos encontros inesperados. Não admite mentiras de mentirinha. Carnaval é a brincadeira sincera. É descaradamente falso, sem subterfúgios ou dissimulação. Ao ser tão explícito, o carnaval permite que se veja por oposição o que é real e o que pode ser verdadeiro. Requer a mais pura criatividade, a mais aguda sensibilidade, a mais genuína humanidade.
O carnaval faz sorrir, mas também faz pensar. Nunca é cedo para lembrar que esses quatro dias de festa são preciosos para nós, humanos, que temos visto de tudo, mas não perdemos a teimosia e o desejo de conservar a nossa natureza: imperfeita e subjetiva, mas capaz de emocionar-se com e até mesmo sem motivo aparente. É pelo avesso que descobrimos quem somos e o que podemos continuar sendo: não melancólicos sobreviventes em um mundo automatizado, mas pessoas que ainda imaginam e sonham, que sorriem e que amam, que brincam e sabem que o carnaval é a festa mais desorganizada e humana que há. Uma coisa seríssima.
Gislaine Marins
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