Mel, mentiras e maiêutica
Não existem fontes sobre o cardápio do dia em que Arístocles decidiu escrever mais um diálogo. É provável que tenha comido pão preparado com farinha de trigo, cevada, grão-de-bico, gergelim e sementes de papoula. E que tenha cortado uma fatia ainda quente e perfumada, cobrindo-a com o melhor mel da região. E que tenha saboreado o famoso iogurte dos montes: mas ele não dissertaria sobre o banquete. Não naquele dia. Se em relação ao menu precisamos confiar na probabilidade e na imaginação, sabe-se ao certo que Arístocles tinha ideias bem claras sobre a ética.
Filho de uma família da aristocracia ateniense, vivenciou na juventude a ascensão da tirania dos trinta, da qual fazia parte um parente seu, e viu o seu professor ser acusado de desobediência pelo regime. O acusado foi salvo porque a tirania durou pouco, mas logo foi incriminado novamente, desta vez de ter corrompido os jovens. O seu nome era Sócrates e o final desta história é conhecido por todos, embora haja um detalhe interessante a ser lembrado: o condenado poderia ter arquitetado um plano de fuga, visto que a execução seria realizada cerca de um mês depois da sentença, mas Sócrates não aceitou a proposta. Seria fiel à lei, embora injustiçado.
Tal rigor e coerência certamente influenciaram Arístocles. Um exemplo vale mais do que parole, parole, parole. E os fatos eram claros: para não serem também alvo de instrumentalizações, Arístocles e outros jovens decidem deixar a cidade, numa uma espécie de auto-exílio. Fascinado por vulcões, dizem as fontes que ele decidiu passar um tempo na região oriental da Sicília para estudar o Etna.
Caindo nas graças de jovens da corte local, quando Arístocles começou a levantar questionamentos éticos, o tirano no poder mostrou todo o seu dessabor. Teve de afastar-se novamente. Não se sabe se por ordem do governante ou se pelos riscos da viagem que enfrentou, Arístocles foi escravizado, sendo vendido no mercado de Egina, onde foi resgatado por um atleta de origem líbica, um certo Aniceres.
Reconquistada a liberdade, decidiu voltar para a sua cidade natal, que atravessava os últimos momentos de um período bélico fraticida, o qual culminaria com o predomínio da influência persa sobre a região grega. Instalou-se nas proximidades do cemitério de Atenas, junto de um bosque onde estava enterrado o herói Academo e ali fundou a sua escola.
No ano seguinte, os persas apresentariam uma proposta de armistício incluindo a ameaça de uma nova guerra em caso de rejeição das condições oferecidas. Enquanto isso, Arístocles preparava um diálogo crítico à retórica, da qual Górgias era o maior expoente. Górgias, por sua vez, estava numa fase da vida em que podia doar custosas estátuas para templos gregos, exibindo a riqueza e o prestígio acumulados com a divulgação das suas teses sobre a impossibilidade de ter domínio do conhecimento, mas de se poder dominar de tal modo a linguagem a ponto de demonstrar tudo e o seu contrário, como na melhor genealogia do poder das fake news que assolam a nossa atualidade.
Deveria ser uma manhã, a refeição recém realizada deveria garantir as forças para iniciar a redação do diálogo. Arístocles já tinha cerca de quarenta anos, Górgias pelo menos cinquenta anos a mais. O seu mestre, há muito falecido, tinha sido representado com escárnio pelo grande comediógrafo Aristófanes. As dificuldades da sua vida, o sucesso de Górgias, a morte de Sócrates e a sua ridicularização poderiam ter desencorajado Arístocles e abalado as suas convicções, mas isso não aconteceu. O que houve é que Arístocles, popularmente conhecido como Platão, seu apelido desde a juventude, continua a dar lições sobre a centralidade da ética. Os seus ensinamentos nem sempre são saborosos como o mel, nem sempre nos atraem como abelhas enebriadas pelo néctar, mas não perdem a sua validade ao longo dos séculos e milênios passados. E Górgias? Bem, ele também tem a sua parcela de razão: uma mentira jamais deixará de ser falsa e de ter as pernas curtas. A mentira, de fato, está destinada a ser desmascarada; a ética está destinada à eternidade. Uma bela diferença que Platão compreendeu bem, escrevendo o seu nome de maneira definitiva na cultura ocidental.
Gislaine Marins
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