O movimento ecumênico: uma herança comum
O movimento ecumênico tem mais de um século de existência. Com o intuito de aproximar e possibilitar o diálogo, a cooperação e a comunhão entre cristãos e igrejas, esse movimento ganhou terreno em ambientes eclesiais onde outrora se regava a semente do distanciamento e da divisão. Aos poucos foram surgindo associações de cristãos e de igrejas que enriqueceram com seus carismas e fortaleceram com suas iniciativas o movimento em prol da unidade cristã. Palavras como respeito mútuo, tolerância, diálogo, cooperação, fraternidade, comunhão e perdão se sobressaem na linguagem de muitos cristãos, redimensionando a consciência eclesial, a orientação doutrinal e o agir pastoral das igrejas. Para esses, o ecumenismo passou a ser uma palavra de ordem, um imperativo da consciência cristã e eclesial. Tornou-se um fato social impactando o mundo inteiro, e um fato eclesial dando novos horizontes para o ser e o agir das igrejas que a ele aderem.
Esse movimento nasceu da inquietação profética de pessoas que se questionavam com a situação de divisão na qual vivem os cristãos. E entenderam que essa realidade contradiz a essência do ensinamento do Evangelho: o amor que gera comunhão. Não se pode ser cristão autêntico justificando a divisão dos cristãos. Sobre a divisão não se justifica, se penitencia. Profetas da unidade, como o metodista John Mott (1865-1955), o luterano Nathan Soderblon (1866-1931), o anglicano Charles Brent (1862-1929), intuíram com a profundidade da fé evangélica que a divisão dos cristãos é um mal que precisa ser superado. E trabalharam intensamente para isso, criando instrumentos de diálogo e de comunhão, como a Conferência Missionária em Edimburgo (1910), os organismos Vida e Ação (1925) e Fé e Constituição (1937). Dessas organizações ecumênicas surge o Conselho Mundial de Igrejas (1948). Instrumentos que visam aproximar as diferenças, reconciliar as divergências, fortalecer as aspirações por comunhão. Temos, assim, o “movimento” pela unidade que hoje congrega centenas de comunidades cristãs em todo o mundo. Quem nele se integra abre sendas entre os muros que separam milhares de cristãos e alargam os caminhos do diálogo.
O movimento ecumênico chegou na América Latina bem cedo, como o atesta a Conferência do Panamá, realizado pelas igrejas evangélicas (1916), logo seguida pelos Congressos de Montevidéu (1925) e Havana (1929). Como aconteceu no continente europeu e norte-americano, também no hemisfério sul surgiram associações de cristãos e de igrejas, como a União Latino-americana de Juventude Evangélica – ULAJE (1941), Igreja e Sociedade na América Latina – ISAL, mais tarde denominada Ação Social Ecumênica Latino-americana – ASEL (1961), a Unidade Evangélica Latino-americana – UNELAM (1965) e o Conselho Latino-americano de Igrejas – CLAI (1982).
E eis que as sementes da unidade caíram também em solo brasileiro. A insatisfação pela situação de divisão inquietou o coração e a consciência de cristãos e de igrejas. São exemplos notáveis o metodista Epaminondas Moura, o qual participou das Conferências de Vida e Ação e Fé e Constituição, recomendando ao III Concílio Geral da Igreja Metodista do Brasil a sua filiação ao Conselho Mundial de Igrejas, em formação, sendo essa a primeira igreja da América do Sul a fazê-lo, em 1942; os luterano S.H. Dohms, que orientou a Federação Sinodal (1949) a filiar-se ao Conselho Mundial, em 1950, e Bertoldo Weber, infatigável trabalhador na abertura dos caminhos de diálogo sobretudo entre as igrejas situadas na região sul do Brasil; os anglicano José Del Nero e o seu “Manifesto Ecumênico”, aprovado no Sínodo da Igreja Episcopal, em 1952, e Jaci Maraschin, este sobretudo pela sua teologia ecumênica. Muitos outros compõe essa lista: Rubem Alves, Milton Schwantes, Joaozinho de Araújo, Zwinglio Dias... A utopia ecumênica desses influenciaram suas igrejas possibilitando a criação de associações ecumênicas, inicialmente inter-protestantes, como a Aliança Evangélica Brasileira (1903), a Comissão Brasileira de Cooperação (1918), a Confederação Evangélica do Brasil (1934).
O movimento ecumênico tem mais de um século. A Igreja Católica se integra nele a partir do Concílio Vaticano II, entendendo- como “moção da graça do Espírito Santo” (Unitatis redintegratio, 1). O Concílio reconhece que a divisão dos cristãos “contradiz abertamente a vontade de Cristo, e é escândalo para o mundo” (Unitatis redintegratio, 1), de modo que “a solicitude na restauração da união vale para toda a Igreja” (Unitatis redintegratio, 5). Assim, como em outras partes do mundo, também no Brasil os cristãos católicos se integram em organizações ecumênicas como o Grupo Ecumênico de Reflexão Teológica – GERT (1957), o Serviço Inter-confessional de Aconselhamento – SICA (1972), a Coordenadoria Ecumênica de Serviços (1973), o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (1982). A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil confirma e fortalece essa caminhada ecumênica em suas Diretrizes de Evangelização, na participação efetiva em organismos ecumênicos, na criação de estruturas internas para favorecer a unidade dos cristãos - como a atual Comissão Episcopal Pastoral para o Ecumenismo e o Diálogo Inter-religioso.
Muitos são os frutos do diálogo ecumênico realizado ao longo destes anos. Destacamos: a fraternidade reencontrada entre os cristãos pelo reconhecimento mútuo do batismo e pela afirmação dos valores do diálogo, do respeito mútuo e da convivência; a construção de projetos de cooperação na evangelização e na luta pela superação dos males que afligem nossa sociedade; a convergência em elementos da doutrina cristã; o desenvolvimento de uma espiritualidade ecumênica em muitos espaços eclesiais.
Não obstante esses passos dados nos caminhos do diálogo, os obstáculos também aparecem a cada curva. O movimento ecumênico sente atualmente uma espécie de cansaço pelo atraso da comunhão tão desejada. Posturas de lideranças eclesiásticas por vezes fragilizam a convicção alicerçada nessa longa caminhada. Em muitos ambientes, o espírito de diálogo, respeito mútuo e cooperação cede lugar a atitudes fundamentalistas, exclusivistas e agressivas. Atrasa sempre mais a recepção na estrutura das igrejas dos frutos obtidos pelos esforços das comissões de diálogo teológico.
Diante desses desafios, há que se afirmar duas principais atitudes. A primeira é ter claro o que, realmente, motiva o empenho ecumênico, como a fé, a consciência eclesial, a caridade evangélica, a consciência missionária, os gestos de diakonia que aproximam as pessoas, as igrejas e as religiões. A segunda atitude é recuperar a memória da caminhada ecumênica e refletir sobre ela para alargar os caminhos percorridos até aqui. A rica história do movimento ecumênico precisa ser assumida como uma herança de todas as pessoas que sonham por um mundo de fraternidade, justiça e paz. E as igrejas, em particular, tem uma grande responsabilidade de garantir essa herança para o nosso tempo e o futuro.
Elias Wolff
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