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Crianças Warao, a parte mais frágil da tragédia dos migrantes forçados por aqui

Há 3 anos
Batizado de 11 crianças na Igreja São Judas Tadeu, entre elas Andru (Cuiabá, dia 06/05/2022)
Batizado de 11 crianças na Igreja São Judas Tadeu, entre elas Andru (Cuiabá, dia 06/05/2022) (foto por Arquivo pessoal)

Chocado com as notícias da morte cruel do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips no dia 5/06 cujos corpos foram encontrados recentemente. Tenho certeza de que o corpo de Cristo continua sendo torturado e mutilado no coração da Amazônia. Estou sem condições emocionais de escrever mais a respeito, por isso vou para outro assunto.

Eu nasci em um tempo em que milhares de crianças morriam no Nordeste e muitas pessoas justificavam que era “mais um anjinho que ía para o céu”. No noviciado em Cascavel (PR, 1984-1986), a cobra que temos mais encantadora, porque marca os anos em cada anel de seu chocalho, eu desejava ir trabalhar em Crateús (CE) para colaborar de alguma forma com a Diocese de Dom Fragoso. Essas formas religiosas eram usadas para abafar as dores dessas perdas irreparáveis, mas eu compreendia que não podemos colocar nas costas de Deus o que é nossa responsabilidade. Fui assessor da Pastoral da Criança Indígena que iniciou aqui no Mato Grosso juntamente com a Irmã Ada Gambarotto, e aprendi que criança não nasce para morrer criança: vem a este mundo para crescer e trazer muita alegria para a família. A Pastoral da Criança tinha uma parceria bonita com o governo em tempos passados e salvou milhares de vidas com medidas simples de acompanhamento das grávidas e das crianças, principalmente com a chamada multimistura para superar a desnutrição.

Já nos tempos antigos, o imperador tinha o poder de levantar o seu braço e mostrar o polegar que se levantava para dar vida ao que era julgado ou para abaixar e decretar a morte, uma flagrante injustiça fascista. Por isso, Nossa Senhora canta louvores a Deus nesse dia o Magnificat (Lc 1, 39-56), porque nosso Deus eleva o seu braço dando vida a todos. Em contraste, o comandante geral do governo atual parece agir como guia de uma seita maligna e quer sacrifício das crianças para os seus ídolos. Além disso, juntou dinheiro na mão de poucos e tirou as formas de financiamento desse trabalho maravilhoso da Pastoral da Criança que se fazia com as pessoas mais carentes tivessem comida. Um trabalho que, com poucos recursos, fazia o mais importante com agentes da Pastoral da Criança voluntários. Assim, outros programas como o Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida etc. foram desfeitos e o dinheiro serve para pagar super salários para os generais que estão apoiando esse governo genocida.

Na Arquidiocese de Cuiabá, temos a Terra Indígena Santana para os Kurã-Bakairi (Nobres) e a Terra Indígena Aterradinho para os Guató (em Barão do Melgaço). Em Cuiabá também se encontram as sedes da Secretaria Especial de Saúde (Sesai), da Federação dos Povos Indígenas do Mato Grosso (Fepoimt), do CIMI-MT, da FUNAI, a Casa de Saúde Indígena (Casai) e muitos indígenas vieram para estudar ou por outras razões. Agora, temos mais uma etnia na Arquidiocese que são os Warao[1], vindos da região do delta do rio Amacuro no alto Orinoco (Venezuela). Cerca de 100 estão no Bairro Tijucal, os quais são os mais fragilizados por causa da situação de não serem acolhidos como merecem as pessoas e, por causa dos preconceitos duplo (por serem da Venezuela e por serem indígenas), não conseguem trabalho para se manter dignamente.

A prefeitura foi capaz de tirá-los do espaço da Rodoviária no começo da pandemia,[2] e até pagou alguns meses de aluguel no Bairro Parque Cuiabá, mas o interesse era tirar os Warao do espaço público e escondê-los em lugares distantes do Centro, onde as condições de vida são insalubres. Fui visitá-los no Parque Cuiabá e levar alimentos, colchões e ventiladores, pois o calor de Cuiabá e a quantidade grande de pessoas na casa exigia algum conforto. Depois, transferiram para uma casa com árvores na frente no Tijucal, algo mais arejado e no pátio chamaram para celebrar a festa de Nossa Senhora de Coromoto. Nesse espaço e outros Warao de outras casas vieram participar em outubro de 2020.[3] O ambiente era agradável, mas um grupo mudou-se para Porto Alegre e eu fui para o pós-doutorado. O Leonel que tinha pretensões de fazer o Mestrado de Antropologia na UFMT ficou acompanhando os encaminhamentos para a legalização dos documentos.

Não estão conseguindo pagar água, energia e o aluguel das casas onde moram e passam por condições precárias na saúde, educação e segurança alimentar. Este ano de 2022 está sendo duro para os Warao: Virgília Zapata Yovar teve um filho que faleceu depois de um dia ao nascer, ainda no hospital Santa Helena, Yosmar Zapata Rivero (31/03/2022). Depois, Endri Jesus Mata Zapata (08/08/2021-22/04/2022), que veio de Rondonópolis para tratar porque apareceu um tumor entre os olhos. Como lá dormiam no chão de barro pensam que uma cobra ou escorpião o picou. Ernaida Rivero Estrella também está criando três órfãos da irmã que faleceu em Roraima. Essa fragilidade das crianças deixou-os muito aflitos e procuraram o batismo para as demais crianças. Atendendo à solicitação deles, na primeira sexta-feira do mês de maio, foram batizadas 11 crianças na Igreja São Judas Tadeu e foi feito um lanche após o batizado para confraternizar.

No amanhecer desse dia 27/05/2022 Andru Rojas Moreno, filho de Isacio Rojas e Magali Moreno Moreno, neto de Indalcio Rojas e Maria Zapata (paternos) e avó materna America Moreno, nascido em Manaus no dia 17/05/2020, faleceu no Pronto Socorro de Cuiabá. Foi ao Pronto Socorro com vômitos (“botava sangue”, disse Rabel Aquiles Rivero, o aidamo Warao). Depois de receber uma bolsa de sangue, voltou para casa, mas depois de beber água voltou a vomitar sangue e o levaram novamente para o Pronto Socorro, mas o coração não resistiu. Vamos rezar por Andru, por sua família e essa etnia que está em diáspora. No amanhecer do dia 28, foi feita a oração das exéquias e o sepultamento aconteceu às 8:30 horas no Cemitério São Gonçalo. Muito forte é o sofrimento expressado pela mãe e avós nos rituais cheios de emoções.

 

Casa do aidamo Warao Rabel Aquiles Rivero (35 pessoas morando, 19/05/2022).

 

No dia 19/05/2022 estavam morando na casa alugada do Rabel Aquiles Rivero e Maria del Vale Zapata 35 pessoas em condições precárias. Na casa alugada de José Marin Navarro e Claudia Moreno Baria eram 27 pessoas; e na casa de Naici Moreno e Euclides Garcia, este casal vivia com 3 filhos. 25 Warao estão chegando de Rondonópolis, pois lá também estão tendo dificuldades de sobreviver. Estamos buscando local para que eles possam sair da necessidade de pagar aluguel, pois isso já seria um alívio.

 

Casa da família do falecido Andru com 27 pessoas vivendo ali liderados por José Marin Navarro (19/05/2022).

 

Rabel conta que Nossa Senhora de Coromoto é assim chamada porque um caçador de onças indígena que tinha esse nome recebeu a visita da Virgem Maria lá no Orinoco. Por isso, ela se tornou padroeira da Venezuela e a ela suplicam pela vida das crianças. Mencionou que neste mundo tem xamã, homem que tem poder de curar e este tinha um maracá grande que precisava das duas mãos para tocar. Este xamã cuidava de uma terra misteriosa e casou-se com uma mulher jovem. Como ela buscou um amante, o xamã ficou bravo, pegou uma pedra preciosa e colocou dentro da maleta de coisas que usava para curar as pessoas. Sentou-se em cima dessa maleta, colocou o filho que tinha no colo e começou a tocar seu maracá. Assim a maleta foi levantando voo e subiu para os céus. No outro dia o casal que ficara estava morto.

Conforme dito anteriormente, estamos vivendo na iminência da chegada de mais um grupo de Rondonópolis e, nesse ínterim, a Casa dos Migrantes comunica que chegaram no dia 25/05 de Porto Velho (RO) 19 Warao, sendo 9 crianças. Ali vão poder ficar cerca de 3 meses e depois o que será? Estamos articulando com várias pessoas a possibilidade de formar uma aldeia Warao urbana e estamos buscando um lugar de vida digna para viver, onde eles podem estar mais juntos, se auxiliarem como célula de sua etnia nessas terras e também ter instituições que sustentem essa identidade como escola, posto de saúde etc.

Também Rabel narrou que os Warao viviam nos céus antes de virem morar na terra onde estão agora. Dois líderes fizeram uma competição para ver quem tinha pontaria melhor. Havia uma mata de açaí e os pássaros chegaram para comer o açaí. Um dos dois atirou a flecha, mas não acertou nenhum pássaro e caiu na terra. Procuraram a flecha e viram que ela tinha provocado um buraco grande onde caíra. Viram que lá dentro havia uma outra terra e fizeram fio de buriti (moriche; Maruritia flexuosa) para descer até aquele lugar pois ali havia todo tipo de comida. Voltaram para chamar os parentes pois onde estavam passavam fome. Uma mulher grávida, ao atravessar o buraco provocado pela flecha, ficou trancada e não conseguiram mais tirá-la dali para outros passar. Os que desceram antes são os diferentes indígenas que estão na terra hoje, entre eles os Warao. O ventre da mulher grávida que ficou no buraco pode ser visto até os dias de hoje, pois é a estrela da manhã.

Será que isso tem algo a dizer para nós? Espero sinceramente que cresça a empatia e que vençamos a indiferença, as formas de discriminação, as violências incentivadas pelos que nos governam, das quais padecem os mais empobrecidos, entre eles os que não podem usufruir do lugar de cidadãos nesse Brasil. Como os Warao estão sendo acolhidos no território tradicional dos Bóe (Bororos) que já não possuem mais aldeias nessa região da Arquidiocese, estou batendo na porta das várias instituições públicas para que assumam a responsabilidade de criarmos uma aldeia urbana por aqui e, na vida social e cultural, poder encontrar um lugar dignos a fim de procurar conservar o equilíbrio na vida cerimonial em vista da paz com a nossa sociedade, com a natureza e com o mundo dos antepassados.

 

[1] De língua isolada, mas com empréstimos linguísticos dos troncos linguísticos Aruaque e Caribe, Warao, na língua nativa, significa povo da canoa, o que indica sua relação visceral com as águas fluviais do rio Amacuro, pois são, tradicionalmente, pescadores e coletores, mas também horticultores que vivem em comunidades de palafitas localizadas em regiões ribeirinhas e marítimas, além de pântanos e bosques inundáveis.

[2]https://olivre.com.br/a-necessidade-faz-indigenas-venezuelanos-acampam-na-rodoviaria-de-cuiaba; https://projetocolabora.com.br/ods3/duplo-abandono-dos-indigenas-que-vivem-em-cuiaba/

[3] As camisetas que estávamos fazendo para eles foram suspensas quando houve a debandada (9/11/2020), mas ficou a proposta: Dani Coromoto: Ka sonetou Warao kokotuka!

Sobre o autor

Aloir Pacini

Antropólogo, jesuíta e professor da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) em estágio pós-doutoral com pesquisa sobre o território transnacional dos Guaranis. Fez Mestrado no Museu Nacional (UFRJ) com estudos sobre as Missões com os Rikbaktsa e o Doutorado com os Chiquitanos (UFRGS). Em etnologia indígena, estuda os territórios tradicionais (águas) e suas vinculações com as identidades nas fronteiras dos Estados. Seu trabalho reflete o do cuidado da casa comum (proposta do Papa Francisco) e os papéis das instituições nas sociedades, também da Igreja no contexto de Mato Grosso e Brasil.