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O Caminho da Cruz dessa humanidade tem raízes no Brasil

Há 3 anos
Encenação da Paixão de Cristo: nas dores dos povos encontramos uma identificação com a dor de Jesus vivenciada na sua via crucis
Encenação da Paixão de Cristo: nas dores dos povos encontramos uma identificação com a dor de Jesus vivenciada na sua via crucis (foto por Luís Henrique Marques)

A Via Sacra[1] que, durante todo o período colonial levou ao Calvário e crucificou milhões de Cristos nas Américas, voltou a se fazer mais dramático no atual governo do Brasil. Talvez por isso, a humanização se faz presente em tantas iniciativas dos indígenas com manifestações proféticas em Brasília e dos sem-terra com a partilha dos alimentos agroecológicos que produzem. Essas raízes específicas no Brasil nos levam a esperar a ressurreição.

As Estações da Via em Cruzes, tão próprio dos pueblos chiquitanos, seguem como Estações de um trem que percorre os seus trilhos e interrompe a viagem para descarregar e carregar pessoas e produtos diversos. Trata-se de uma metáfora da vida humana que um dia cessará aqui na terra para iniciar também nos céus e os que não forem para lá, que supliquem para desaparecer definitivamente para não permanecerem nos infernos, pois as lembranças dos males dos que fizeram nas guerras ou usaram dos espaços de governo para desmontar os direitos dos trabalhadores e encherem seus bolsos lhes serão insuportáveis.

Com grande sabedoria e atento aos sinais dos tempos, o Papa Francisco realizou no dia 25/03, às 12h50 (horário de Brasília), na Basílica de São Pedro (Vaticano) a Celebração da Penitência e o Ato de Consagração da Rússia e da Ucrânia ao Imaculado Coração de Maria, que já desalojou cerca de 11 milhões de pessoas em um mês de guerra. Esse gesto foi replicado também em Fátima (Portugal), para onde o Papa Francisco enviou o cardeal Konrad Krajewski, pois ali Nossa Senhora de Fátima fez esse pedido quando apareceu às três crianças que pastoreavam as ovelhas numa Europa que estava em outro momento, igualmente em guerra. Onde Deus Pai, Jesus Cristo e o Espírito Santo estão, deve reinar a paz, porque essa nasce da conformidade do coração humano Àquele que o ama, como já nos ensina o mestre espiritual Santo Inácio de Loyola: observe se sua decisão traz paz para ver se foi acertada.

Traduzida em tantas línguas quantas puderam, milhões de pessoas rezaram juntos essa oração, também nós jesuítas em Congregação Provincial no Brasil (Itaici) fizemos o mesmo. A princípio parecia que seria um ato devocional sem muita influência na história, mas observando o conteúdo da consagração e a adesão das pessoas em todo o planeta, vemos a profundidade do acontecimento, porque a “Mãe de misericórdia, [...] providente, [...] faz voltar a paz, porque sempre nos guiais para Jesus, Príncipe da paz.” [2]

A oração recorda as tragédias das guerras passados com o sacrifício de milhões de pessoas atraiçoando os sonhos e esperanças dos jovens porque passamos a produzir armas em vez de alimentos: “Dilaceramos com a guerra o jardim da Terra, ferimos com o pecado o coração do nosso Pai, que nos quer irmãos e irmãs.” A oração pede que Maria nos lembre de que somos todos irmãos, não há inimigos a aniquilar mas a perdoar porque se matam sem saber o porquê, pois o Imaculado Coração mostra a ternura da Mãe para com todos os seus filhos “nos transes mais apertados da história”. Inexplicável é por que nos tornamos capazes de toda a violência e destruição, necessitamos urgentemente da intervenção divina-materna, já que a humanidade mais uma vez se torna obtusa e irresponsável levada pelo fermento do mal. Como Rainha da Paz em prantos por seus filhos, talvez Maria Santíssima convença os corações endurecidos e cheios de ódio para uma conversão integral.

As vossas mãos maternas acariciem quantos sofrem e fogem sob o peso das bombas. O vosso abraço materno console quantos são obrigados a deixar as suas casas e o seu país. Que o vosso doloroso Coração nos mova à compaixão e estimule a abrir as portas e cuidar da humanidade ferida e descartada.

Como não se deixar comover com o Cristo que morre na cruz por causa de nossos pecados?

Mãe, agora queremos acolher-Vos na nossa vida e na nossa história. Nesta hora, a humanidade, exausta e transtornada, está ao pé da cruz convosco. E tem necessidade de se confiar a Vós, de se consagrar a Cristo por vosso intermédio. O povo ucraniano e o povo russo, que Vos veneram com amor, recorrem a Vós, enquanto o vosso Coração palpita por eles e por todos os povos ceifados pela guerra, a fome, a injustiça e a miséria.

Outras cruzes estão sendo plantadas no mundo todo. A via sacra da América Latina, de Adolfo Pérez Esquivel (1992), com os comentários de Alastair McIntosh mostra os camponeses que “lutam pela sobrevivência” em meio à substituição da agricultura de subsistência pelo agronegócio exportador, uma “batalha” não-violenta dos sem-terra contra essa repressão injusta, baseada na proclamação da libertação dos oprimidos (Lucas 4, 18-19). Vamos plantar uma oliveira no Dia da Terra Palestina, 30 de março, porque o Estado de Israel insiste em invadir, expropriar, tomar e retirar da terra os palestinos, uma guerra infinda desde que os EUA passaram a sustentar todas essas atrocidades.[3]

A oração recorda que foi o sim que brotou do Coração de Maria que abriu as portas da história ao Príncipe da Paz, ocasião para que o pecado e a morte fossem vencidos quando Jesus se entregou em sacrifício no altar da Cruz, e ressuscitando ao Terceiro Dia. Contudo, importante é saber que a Via-Sacra acontece também em outros lugares. E estamos de joelhos nas sextas-feiras acompanhando a via-sacra de Jesus e dos nossos irmãos e irmãs em tantas partes do mundo, mas também no Brasil, especialmente dos indígenas e sem-terra.

Brasil Terra Indígena, de Nando Motta (2021)

 

Apesar do Brasil ter quase eliminado os indígenas no litoral por onde a colonização começou, a charge acima de Nando Motta mostra os indígenas em todas as fronteiras porque essa terra somente será uma nação feliz se reconhecer os seus ancestrais presentes na estrutura da nossa sociedade atual. Se os indígenas estiveram em Brasília na Esplanada dos Ministérios, no Acampamento Luta pela Vida, em agosto de 2021 motivados pela votação do Marco Temporal porque este ameaçava a vida dos que foram gerados e criados nessa Terra de Santa Cruz, voltaram para o Ato pela Terra, no dia 09 de março diante da aprovação de mineração em Terra Indígena para dizer ao Estado que o Mercado não é nosso Deus que está acima de tudo!

Originário é seu direito de usufruto dos territórios tradicionais porque a respeitam e cuidam e não fazem da terra propriedade privada. O tema do Acampamento Terra Livre, de 4 a 8 de abril de 2022 Retomando o Brasil: demarcar territórios e aldear a política, tem a ver com esse ano das eleições e a valorização da política como a forma mais universal de arte para o bem viver. Demonizar a política para alguns que queriam assaltar esses espaços de governo já vimos que não dá certo na última eleição e, por isso, vamos nos unir pela democracia no Brasil e voltar a sermos felizes, talvez com mais indígenas na política, para termos uma forma diferente de fazer e ser política, mais circular e sistêmica. Chega de desgraças com um governo fascista que nos tirou o pão e os sonhos de liberdade, de fraternidade valorizando as nossas diferenças como algo que fecunda nossa história.

Assim a Via Sacra dos povos indígenas tem essa Estação na Semana dos povos indígenas, especialmente no Dia do Índio, 19 de Abril, depois da Semana Santa, quando o mundo cristão rememora a paixão, morte e ressurreição de Cristo.

Apesar de vítimas do colonialismo,[4] como combatentes que resistiram e acumularam sofisticados saberes que são pedaços de nossos corpos e do nosso Brasil, assim queremos comemorar no Dia do Índio o nosso compromisso com um Brasil pluriétnico e multicultural. Os povos indígenas, por sua forma de vida sociocultural e étnica tão articuladas, talvez arejem as estruturas políticas do Brasil e cheguemos a ser instrumentos de Paz.

 

[1] A Via Crúcis como Caminho da Cruz chamada Via Sacra se refere ao trajeto que foi percorrido por Jesus carregando a cruz desde Pretório até ao Calvário onde foi assassinado com a morte mais cruel que a humanidade já imaginou. Em Brasília, na Esplanada dos Ministérios, a II Bienal Brasil do Livro e da Leitura programou no sábado de aleluia, Dia do Índio, o seminário Narrativas Contemporâneas da História do Brasil. Numa das mesas, no Auditório Jorge Amado, Fernanda Kaingang, advogada com mestrado em Direito Público, debateu as desigualdades sociais no Brasil com Muniz Sodré, Afonso Celso. Essa Via Crúcis foi adaptada como Via Sacra dos índios: uma narrativa na Bienal do Livro (2014); http://www.taquiprati.com.br/cronica/1083-via-sacra-dos-indios-uma-narrativa-na-bienal-do-livro). Testemunha das dores, dos sofrimentos e da resistência dos indígenas, Las Casas descreve o trajeto seguido por eles carregando a cruz numa via sacra dolorosa, que vai do Pretório Ibérico até o Calvário e a Ressurreição, de 1492 aos dias atuais.

[2] Fonte das partes traduzidas da oração: Vatican News.

[3] Assim, os EUA que já provocaram tantas guerras nessa terra para manter sua exploração sobre todos nós e viverem desses dividendos, agora novamente vendendo suas armas para a Ucrânia, já sentem o peso de uma nova ordem mundial onde o dólar não será mais tão fácil de ser um desses instrumentos de domínio.

[4] O indígena que emerge nas narrativas da história do Brasil talvez remeta ao que Pero Vaz de Caminha encontrou ou estão no imaginário dos brasileiros, escravizado pelos bandeirantes ou catequizado pelos missionários, ou ainda como "obstáculo ao progresso e ao agronegócio" ou mesmo aquele das descrições etnográficas dos antropólogos, mas estamos vendo algo novo quando eles tomam a Esplanada dos Ministérios para marcar posição diante do governo atual e mostrar que outro mundo é possível.

Sobre o autor

Aloir Pacini

Antropólogo, jesuíta e professor da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) em estágio pós-doutoral com pesquisa sobre o território transnacional dos Guaranis. Fez Mestrado no Museu Nacional (UFRJ) com estudos sobre as Missões com os Rikbaktsa e o Doutorado com os Chiquitanos (UFRGS). Em etnologia indígena, estuda os territórios tradicionais (águas) e suas vinculações com as identidades nas fronteiras dos Estados. Seu trabalho reflete o do cuidado da casa comum (proposta do Papa Francisco) e os papéis das instituições nas sociedades, também da Igreja no contexto de Mato Grosso e Brasil.