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Guerra na Ucrânia: o pecado de Caim foi matar seu irmão Abel!

Há 3 anos

A única guerra legítima é aquela que se declara contra a miséria e a ignorância. (Dom Helder Câmara)

O Gênesis (4, 1-15) traz a história de Caim e Abel, filhos de Adão e Eva, ou seja, Eva concebeu e deu a luz Caim, dizendo: “adquiri um homem pelo Senhor”. Depois deu a luz a seu irmão Abel (Gn 4, 1-2). Os dois irmãos subsistiam com o trabalho de suas mãos, mas em atividades muito diferentes. Caim trouxe do fruto da terra lavrada uma oferta ao Senhor e Abel trouxe o melhor dos primogênitos de seu rebanho de ovelhas, e da sua gordura. E o Senhor olhou com agrado a Abel e a sua oferta (versículos 3-4), porque escolheu o melhor para o Senhor. Abel parece ter demonstrado uma qualidade de coração e mente que Caim não possuía. Vou prescindir aqui de interpretar a questão dos preconceitos da sociedade patriarcal pastoril contra a sociedade mais materna ligada à terra, pois isso já fiz noutra oportunidade para compreender duas aldeias Chiquitanas e aqui quero compreender o problema que é matar o próprio irmão.

Mas Deus não olhou com bons olhos a Caim e à oferta que trouxe. Caim ficou irritado em consequência do ciúme. O texto usa apenas um verso para narrar o ato trágico e hediondo de Caim lavrador da terra assassinando seu irmão, pastor de ovelhas. Um diálogo surge em 4, 6-7 com uma série de perguntas de Deus a Caim: Por que te irritaste? Por que mudou teu rosto? Deus afirmou que Caim deve dominar a irritação e fazer o bem. Eis que o pecado estava à porta! Deus o instruiu a fazer o que é certo e a se arrepender. Em vez disso, Caim atraiu Abel para o campo e levantou-se contra seu irmão Abel, e o matou.

Deus chamou Caim para um exame de consciência, mas Caim rejeitou toda responsabilidade (v. 9-11). O trágico é que o pecado levou a mais pecados, a violência gerou mais violência, e as gerações vindouras foram afetadas. Logo veremos a destruição da humanidade por causa disso! Outro diálogo acontece em 4, 9-15: Onde está Abel teu irmão? E Caim respondeu: “Não sei; acaso sou eu, guarda de meu irmão?” Mas Deus sabia do acontecido e pronunciou uma grave maldição (v 12): “Maldito sejas tu, filho da terra que abriu sua boca para receber o sangue que tua mão derramou em teu irmão”.

Fugitivo, Caim andaria na terra como peregrino, permaneceria errante, sem casa definitiva, mas recebeu a promessa de receber a proteção de Deus (v. 15). Garantiu-lhe o Senhor que qualquer um que matar a Caim, será castigado sete vezes mais. Deus pôs um sinal em Caim, para que não o ferisse qualquer um que o achasse. E assim Deus passou a ser o guardião do ser humano, o que ganhou plenitude em na encarnação de Jesus Cristo. Uma ignorância não justifica outra, quem mata o irmão em vingança aumenta o mal, o sangue derramado não é apagado da face da terra.

Caim saiu de diante do Senhor e foi habitar Node, ao oriente do Éden e podemos pensar que todos nós somos descendentes de Caim nessa terra. Jesus considerou Abel um mártir, o primeiro perseguido e assassinado (cf. Mt 23,35; Lc 11,50-51). Hebreus refere-se ao sacrifício de sangue de Abel como grande ato de fé inculturado na fé judaica (Hb 11, 4). João menciona Caim como um exemplo supremo de maldade e do ódio contrário ao Amor (1 Jo 3, 11-12). Judas 1,11 identifica como perversos os que seguiram “no caminho de Caim: buscando o lucro, caíram no erro de Balaão e foram destruídos na rebelião de Corá.

As guerras não surgem do nada; possuem razões geopolíticas que devem ser estudadas para aparecerem as questões étnicas, religiosas, econômicas, territoriais que estão por trás. Contudo, para mim não importa o motivo: matar o outro sempre é um erro, porque nascemos para viver como irmãos! Nesse contexto de guerra não ajuda nada ser superficial em achar heróis e bandidos. É preciso ter consciência de que não se trata de uma luta entre capitalistas e comunistas, pois é um problema entre países capitalistas que possuem heranças muito próximas e o parentesco entre russos, ucranianos e poloneses pode auxiliar a pensar que todos somos irmãos, como o Papa Francisco reforçou na terceira encíclica do Papa Francisco "Fratelli Tutti" (Todos os Irmãos) ao argumentar em favor da fraternidade e da amizade social.

Não temo apoiar a afirmação do Le Monde diplomatique de que mais essa destruição está a mando dos EUA. A guerra na Ucrânia começou faz 8, anos quando um governo neonazista assumiu o poder. Mas temos outras conexões como a invasão da Síria pela Rússia que começou no fim de setembro de 2015 e não gerou tanta polêmica,[1] ou mesmo os EUA que invadiram o Iraque e o Afeganistão ou Israel invadindo a Palestina. Isso tudo deve ser considerado quando pensamos nas atrocidades que vão acontecendo no dia a dia e levam ao estremecimento de relações e à ilusão da guerra como solução para alguma coisa.

Quem ganha com a guerra que a OTAN tem provocado são as fábricas de armas as quais, sabemos, investem nos conflitos bélicos porque os lucros vêm avolumados no pós-guerra. Isso significa que não justifico a invasão da Rússia à Ucrânia, penso que a soberania dos países deve ser preservada a todo custo. Para mim, o uso de armas sempre é um equívoco e deve ser evitado, porque sou formado no Serviço da Paz e da Justiça (Serpaj), não nos quadros dos Tupinambás com argumentação de Florestan Fernandes, que acaba justificando uma suposta função da guerra, ou mesmo aqueles que diziam que as ciências e as pesquisas avançaram muito na Primeira e Segunda Guerra Mundial, quase que justificando as atrocidades que se praticam nesses tempos de guerra. Tudo é melhor do que matar o irmão, pois a humanidade toda sai perdendo com essa ignorância da guerra.

E parece que o Brasil não tem muito que auxiliar nessa guerra. O presidente foi para a Rússia, porque fechou as fábricas de fertilizantes que tínhamos aqui e os preços de insumos, gás natural e potássio aumentaram astronomicamente. Por isso, agora, precisamos importar da Rússia. E depois passamos pelo vexame do deputado estadual de São Paulo, Arthur do Val (Mamãe Falei), que foi para o TOUR DE BLONDE para “ajudar” os refugiados na Ucrânia e escandalizou a todos nós falando das mulheres que seriam loiras, mais “fáceis” agora porque estão empobrecidas por causa da guerra (ver Carta para Arthur do Val: a condição feminina na guerra e na paz, Jamil Chade, 05/03/2022). Por atitudes como essa que precisamos nos manifestar no dia 8 de março dado que o machismo, racismo, misoginia etc. ainda reinam entre nós.

No meio da confusão, uma vitória merece ser narrada. Aqui no Conselho de Educação Indígena constatamos que a Secretaria de Estado de Educação (Seduc) não estava respeitando os avanços alcançados a Resolução Normativa nº 004/2019-CEEE/MT, e foi contra os ataques e violações de Educação Escolar Indígena de Mato Grosso. Depois, o Cimi fez uma nota de repúdio contra a publicação do Processo Seletivo Simplificado – PSS (Plataforma – PAS 010/2021 GS/SEDUC/MT no Diário Oficial do Estado em 03 de dezembro de 2021). Mas foi a manifestação da Federação dos Povos e Organizações Indígenas de Mato Grosso (FEPOIMT), organização civil jurídica representativa dos 43 povos indígenas do Estado de Mato Grosso contra o retrocesso cometido pelo governo do Mato Grosso o que deu resultado: “Primeiro veio as propostas de militarização das escolas, incluindo as indígenas; na sequência, implantação de escolas agrícolas, e depois a nucleação das escolas. Estes não foram acordados entre os povos indígenas de Mato Grosso. Todas as propostas ferem diretamente os direitos dos povos indígenas e Legislação Indigenista Brasileira” (FEPOIMT). Só assim, com o MPF e o Defensor Público regional dos Direitos Humanos em Mato Grosso, Renan Sotto Mayor, entrando no páreo é que vão reverter essa situação dramática que já trouxe grandes prejuízos no início desse semestre escolar.[2]

Os povos indígenas dizem que estão sendo atacados em seus corpos e territórios como os ucranianos. O certo é que temos outras formas de superar as tensões, os conflitos se resolvem na diplomacia, na mesa de negociações, como os bons estadistas sabem articular. E nós aqui temos outras coisas urgentes para pensar. A devastação da Amazônia já está dando seus sinais com secas e perda das plantações no sul, enchentes em tantas partes do Brasil. A falta de pão na mesa de muitos brasileiros é mais urgente. Voltarmos a ter seguridade social no Brasil é urgente.

O fluxo migratório da Ucrânia para os países vizinhos continua acelerado e já são cerca de 1,5 milhão de refugiados ucranianos e centenas de civis mortos. O que nos traz alento é a postura firme do Papa Francisco contra a guerra, porque ali estão morrendo irmãos. Mas é importante também lembrar que São Francisco de Assis usou essa forma para se dirigir a todos os seres, o irmão sol, a irmã terra, a água e assim propunha um modo de estar nesse mundo alargando a fraternidade, pois a terra, suas plantações e as cidades estão sendo devastadas. Para destruir é tão rápido, mas construir novamente exige tanto trabalho!

As casas dos jesuítas de toda a Europa foram convocadas a acolherem os refugiados e já estão em ação milhares de gestos que nos levam aos céus. Aqui no Brasil temos os haitianos e venezuelanos que estão fragilizados na condição de migrantes e fazemos o que podemos para auxiliar. Mais uma vez é a solidariedade que salva nesse tempo da Quaresma, como Jesus Cristo nos ensinou, porque a Pascoa virá agora com o bispo Dom Mário Antônio da Silva na arquidiocese de Cuiabá, com certeza: chegaremos a um momento de superação da guerra, porque a paz faz muito bem à humanidade.

 

[1] Aqui a intervenção russa na Guerra Civil Síria foi pensada como uma operação militar com uma série de ataques aéreos e navais feitos pelas forças armadas da Rússia contra o grupo extremista autoproclamado Estado Islâmico.

[2] https://www.fatosdehoje.com.br/noticia/696/seduc-viola-constituicao-federal-e-defensoria-recomenda-retificacao-de-edital

Sobre o autor

Aloir Pacini

Antropólogo, jesuíta e professor da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) em estágio pós-doutoral com pesquisa sobre o território transnacional dos Guaranis. Fez Mestrado no Museu Nacional (UFRJ) com estudos sobre as Missões com os Rikbaktsa e o Doutorado com os Chiquitanos (UFRGS). Em etnologia indígena, estuda os territórios tradicionais (águas) e suas vinculações com as identidades nas fronteiras dos Estados. Seu trabalho reflete o do cuidado da casa comum (proposta do Papa Francisco) e os papéis das instituições nas sociedades, também da Igreja no contexto de Mato Grosso e Brasil.