CIMI contesta informações sobre povos indígenas ditas por presidente Jair Bolsonaro na ONU
Em nota, entidade afirma que discurso de Bolsonaro é baseado em 'realidade paralela'.
Nota do Cimi sobre o pronunciamento de Jair Bolsonaro na ONU
O Conselho Indigenista Missionário – Cimi lamenta as inverdades proferidas pelo presidente Jair Bolsonaro na abertura da 76ª Assembleia Geral da ONU. Em discurso proferido neste dia 21 de setembro, afirmou uma série de políticas desenvolvidas pelo seu governo, a partir de um critério autoconcebido, baseado numa realidade paralela existente apenas na narrativa criada pelo presidente e por seu governo.
O choque entre o pronunciamento fictício e a realidade vivenciada pela maioria dos brasileiros foi evidente. Quanto à temática indígena, o presidente cita que cerca de 600 mil indígenas estariam vivendo em plena liberdade em suas terras, que os índios almejariam viver a partir da “agricultura” e que 80% dos indígenas já estariam vacinados no Brasil, o que não é verdade.
A realidade vivenciada pelos povos indígenas no Brasil, no atual governo, é conflituosa e de violência. O presidente Jair Bolsonaro já prometia em campanha que, se eleito, não demarcaria um centímetro de terra indígena; desde 2018, de fato, nenhuma terra indígena foi regularizada. Foi negado o diálogo com os povos e suas organizações a partir de uma visão integracionista e preconceituosa, que nega a identidade e a autonomia dos povos indígenas no Brasil.
O fato de que existem no Brasil 829 terras indígenas com pendências administrativas, 536 das quais sem nenhuma providência do Estado para iniciar seu processo demarcatório, desmente a afirmação de que os povos indígenas estariam “vivendo em suas terras em liberdade”. Pelo contrário: as ações desse governo foram todas no sentido de inviabilizar ou reduzir o direito à demarcação e ao usufruto exclusivo dos povos indígenas sobre suas terras de ocupação tradicional.
Em 2019, o Ministério da Justiça devolveu à Fundação Nacional do Índio (Funai) 27 procedimentos administrativos de regularização de terras indígenas, os quais já haviam superado todas as fases de identificação e aguardavam a expedição da portaria declaratória, para submetê-las à tese do marco temporal – barrando, na prática, o avanço destas demarcações. Toda a política indigenista do governo que concebia várias políticas públicas, bem como o controle social, foram destruídos.
O orçamento da Funai foi reduzido e a autarquia teve a sua direção entregue aos ruralistas do agronegócio. É importante observar que a política indigenista e as políticas públicas são ações de Estado para os povos indígenas, conquistadas e concebidas na Constituição Federal de 1988. De forma autoritária, o atual governo passou a incentivar a exploração dos territórios indígenas, o que resultou no aumento violento das invasões.
Em 2020, o governo enviou à Câmara Federal o Projeto de Lei (PL) 191/2020, para regulamentar a exploração dos recursos minerais e hídricos nos territórios indígenas. Em abril do mesmo ano, a Funai publicou a Instrução Normativa nº 09, que possibilita a emissão de declaração e a certificação de imóveis privados em terras indígenas ainda não regularizadas.
Em janeiro de 2021, a Funai publicou a Resolução nº 04, que estabelecia novos critérios de “heteroidentificação” de indígenas no Brasil – posteriormente suspensa pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Em fevereiro de 2021, publicou a Instrução Normativa conjunta Funai/Ibama nº 01, que regulamenta o licenciamento ambiental de empreendimentos em terras indígenas. Todas essas normativas foram elaboradas sem a participação dos povos indígenas e vieram a estabelecer novos conflitos territoriais.
Como consequência destas ações, os indígenas foram surpreendidos com o aumento das invasões dos territórios por garimpeiros, madeireiros, loteamentos imobiliários, construções de estradas, além da expansão do agronegócio para o plantio de grãos e a pecuária. Este avanço se deu com o apoio explícito do atual governo, e em plena crise sanitária provocada pelo coronavírus.
Durante a fase crítica da pandemia, foi apresentado à Câmara e ao Senado o PL 1142, de autoria das deputadas Rosa Neide e Joênia Wapichana, que propunha medidas urgentíssimas de apoio aos povos indígenas diante da omissão do governo federal. Aprovado o projeto de lei, o presidente da República vetou 16 dos seus 25 artigos, inclusive o que possibilitava o acesso à água potável para as comunidades indígenas.
Assim também a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709, de autoria da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e deferida pelo pleno do STF em favor de medidas urgentes para as comunidades indígenas durante a pandemia, foi sistematicamente protelada pelo governo, sem efeito prático até os dias atuais. O presidente, ao citar que 80% da população indígena está vacinada, refere-se ao Plano Nacional de Imunização feito pelo governo, em que concebe a existência de apenas 410 mil indígenas no Brasil, e não os quase 850 mil indígenas existentes, conforme censo do IBGE em 2010, número este bem defasado na atualidade.
Salientamos que o presidente da República, ao citar a ampliação da agricultura em terras indígenas, refere-se, na verdade, ao modelo predatório do agronegócio, baseado na monocultura e no uso intenso de veneno. O verdadeiro intento do governo é que os indígenas liberem suas terras para o agronegócio explorar, fato este explícito no apoio que o governo tem externado à tese do marco temporal em benefício desse setor.
Desde 2019, ao utilizar o espaço da Assembleia Geral da ONU, o presidente Jair Bolsonaro tem feito afirmações sobre os povos indígenas, seus territórios e a política do governo para esses povos totalmente irreais visando, principalmente, captar recursos econômicos para o capital predatório explorar os recursos naturais com maior impunidade. Além disso, a falta de providências na regularização dos territórios indígenas tem gerado impactos deletérios ao meio ambiente, com aumento exacerbado dos desmatamentos e das queimadas.
O Cimi, ciente da realidade vivenciada pelos povos indígenas no Brasil, denunciada nos acampamentos “Levante pela Terra”, “Luta pela Vida” e na “II Marcha Nacional das Mulheres Indígenas”, que foram realizadas em Brasília e reuniram mais de 15 mil indígenas nos meses de abril a setembro de 2021, contradiz o discurso do presidente Jair Bolsonaro e a prática do seu governo. Clamamos a sociedade nacional e internacional a continuar o apoio na luta pela efetivação dos direitos dos povos indígenas, com as reais possibilidades de termos um ambiente mais saudável, equilibrado com a vida do planeta, a nossa Casa Comum.
Brasília, 21 de setembro de 2021, dia da árvore
Conselho Indigenista Missionário – Cimi
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