Exploração de gás e petróleo ameaça comunidades no litoral nordestino
Megaprojeto da multinacional Exxon Mobil traz preocupação a populações de Sergipe e Alagoas, que tiram do mar os recursos para a subsistência
As marisqueiras de Terra Caída, em Indiaroba, no Sergipe, estão receosas. O sustento que vem com a maré há gerações está ameaçado por um megaprojeto silencioso que se aproxima do litoral nordestino para a exploração de gás e petróleo na bacia sedimentar de Sergipe-Alagoas.
A perfuração marítima não é novidade para elas, assim como para os pescadores, indígenas ou quilombolas. O que espanta é que o Projeto SEAL, da petroleira Exxon Mobil, iniciou suas atividades sem consultar previamente as populações locais, como manda a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), e com o aval do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
“Todas as empresas que exploram petróleo no nosso litoral realizam audiência pública, mas antes elas fazem visitas nas nossas comunidades, reuniões com os pescadores, mostram o projeto, é o que a gente chama de visita prévia informada. Todas as empresas, principalmente a Petrobras, têm isso aqui no nosso litoral”, disse a professora Ana Elísia Pereira da Costa, de 39 anos.
Filha da marisqueira Maria Angélica Pereira Costa e uma das coordenadoras do Movimento de Marisqueiras do Sergipe, Ana Elísia denuncia que “o estudo deles [Exxon Mobil] é defasado. Ele aponta que a quantidade de pescador da minha região é pequena, e que se vive da pesca e da agricultura familiar, mas não tem agricultura familiar aqui, e sim turismo comunitário e pesca. Eles não fizeram o estudo prévio. Copiaram e colaram de um estudo da Petrobras de 2017”.
O projeto SEAL deve perfurar até 11 poços de exploraçãode gás e petróleo, sendo dois firmes e nove contingenciais (que podem vir a ser utilizados, dependendo dos resultados dos poços firmes).
Segundo o Estudo de Impacto Ambiental (EIA), o “vértice mais próximo da costa (bloco SEAL-M-351) está localizado a 50 km do município de Brejo Grande/SE”, mais especificamente na faixa da foz do Rio São Francisco, o Velho Chico.
Fonte: Witt-O'Brien's-Brasil |
O empreendimento pode trazer consequências para aproximadamente 80 municípios do litoral brasileiro, do Rio Grande do Norte até o Rio de Janeiro, segundo dados do próprio Relatório de Impacto Ambiental (RIMA).
“Nós já entendemos que não tem nenhum obstáculo para o Ibama. É a boiada passando. Eles estão juntos, aliados nisso. E não foi feito nenhum estudo. Eles aproveitaram o estudo antigo da Petrobras, ou seja, um estudo defasado, aproveitado para implantar esse novo projeto de destruição aqui no nosso território”, disse indignada, por telefone, Maria Izaltina Silva, 54 anos, da Associação Quilombola de Brejão dos Negros, localizada no município homônimo.
O quilombo em que Maria vive é formado por cinco comunidades, num território pesqueiro e extrativista e lá vivem cerca de 480 famílias. “A sensação aparentemente é de que as coisas vão continuar sendo feitas à revelia do bem das comunidades, do bem da natureza. A minha sensação é de que nós não somos nada pra eles [governo federal], não é? E que, por sermos comunidades tradicionais, pescadores, pequenos agricultores, podem passar por cima da gente. Não dão importância nenhuma para quem somos, para a nossa existência, para o nosso modo de vida”, lamenta Maria.
Maria e Ana participam do Fórum de Povos e Comunidades Tradicionais de Sergipe e lá tiveram a noção do impacto socioambiental e da estratégia da Exxon Mobil para arregimentar a população sem respeitar as regras. “Algumas lideranças começaram a receber ligações individuais falando da chegada do empreendimento que ia ser instalado, mas em nenhum momento se fez a consulta. E foi nesse período de planejamento do Fórum de Povos e Comunidades Tradicionais de Sergipe que recebemos essa notícia, e aí isso virou o nosso foco”, explica Quitéria Gomes, da Comissão Pastoral dos Pescadores (CPP).
Foto: Maria Izaltina | População de Brejo Grande em Assembleia. Comunidade não foi previamente consultada sobre o empreendimento. |
O trabalho pastoral com pescadores começou em 1968, nas praias de Olinda (PE), com Frei Alfredo Schnuettgen e, mais tarde, se espalhou por Alagoas, Paraíba e Rio Grande do Norte. Em 1976, com o apoio de Dom Helder Câmara, a Pastoral dos Pescadores foi reconhecida nacionalmente pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). “A CPP tem esse papel de estar caminhando junto, ajudando a encaminhar e buscar soluções para tantos impactos e conflitos que os pescadores têm enfrentado nos últimos tempos”, explica Quitéria, que é pescadora e agente de pastoral.
Ela também teme que a pesca artesanal deixe de existir em sua região – Brejo Grande – caso a plataforma seja instalada a 50 km da costa, tirando assim o seu sustento e o de tantas outras famílias. “É um receio que a gente tem, porque sabemos que há uma possibilidade muito grande de acontecer um vazamento, e aí o impacto é bem maior porque, além da região litorânea, toda a região do Baixo São Francisco vai ser impactada. Um vazamento de óleo nessa região pequena aqui vai atacar o pescador, o peixe e toda biodiversidade de forma geral”.
Doutor em oceanografia pela USP (Universidade de São Paulo), o professor Edson Barbieri explica que, nessa região, a chamada “quebra da plataforma continental” é muito curta e, por isso, os riscos são maiores para a biodiversidade e para a população. “É muito próximo. Imagine o pescador artesanal, aquele que a gente chama de ‘sol a sol’, ele pesca ali na costa. Então, qualquer problema que der numa plataforma dessa que está próxima da costa, obviamente, vai afetar. Isso não apenas para os pescadores, mas para os banhistas, para o turismo etc.”, explica o especialista.
No caso de um derramamento de óleo, por exemplo, os danos podem ser irreparáveis e quem primeiro sofre as consequências é a vida marinha. “Temos, por exemplo, as HPAs, que são bioacumulados nos organismos, em peixes ou bivalves [ostras, mexilhões, sururus, encontrados muito no mangue, no Nordeste]. Esses seres são filtradores, eles podem filtrar tudo isso e se contaminar. Quem consumi-los também pode se contaminar com HPAs... Pode se transformar em um problema sério de saúde pública. Estou falando apenas em HPAs, mas é preciso monitorar tudo o que pode acontecer”, alerta o professor Barbieri.
Audiência pública
Todo grande projeto que provoca impactos socioambientais deve contar com a realização de audiências públicas junto à sociedade civil. Ela é uma espécie de instrumento de participação popular no processo. Nas audiências são apresentados o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e o Relatório de Impacto Ambiental (RIMA). Trata-se também de um processo educativo, já que na teoria são fornecidas informações ao público, promovendo a divulgação e a discussão do projeto e dos seus impactos.
Neste mesmo espaço de audiência pública, a sociedade civil, os impactados pelo projeto, repassam informações à administração pública que servirão de subsídio à análise e ao parecer final sobre o empreendimento proposto, para efeito do licenciamento ambiental. É ali, portanto, que a população deveria obter informações e tirar dúvidas, assim como registrar sua opinião, os anseios da comunidade, em especial da população diretamente afetada. Tudo deveria ser levado em consideração para a aprovação ou não de um projeto. Mas a realidade não condiz com a teoria.
Foto: Maria Izaltina | Movimentos, pastorais e associações se articulam e protestam contra a Exxon Mobil. |
“Foi uma audiência que não teve quórum porque as comunidades não tiveram acesso. Além de ser virtual, ela foi à noite, a partir das 18h, e acabou uma hora da manhã. Em nossa comunidade, nós temos dificuldade de internet. Nosso sinal é um pouco ruim, então disseram que iam mandar um ônibus buscar pra levar pra um lugar que ninguém sabe. Como é que nós vamos entrar no ônibus sem saber pra onde? Não queremos, nós não vamos, não vamos participar de reunião virtual”, disse Maria Izaltina, lembrando a Convenção 169 da OIT.
Questionado por nossa reportagem antes da audiência pública, o Ibama, por meio de sua assessoria de comunicação, respondeu que realizou quinze reuniões preparatórias com o objetivo de “abordar as principais considerações dos interessados sobre o projeto de exploração da Exxon Mobil, seguindo todos os critérios de estudos ambientais e outras medidas estabelecidas por lei”. Ainda segundo o órgão federal, a audiência aconteceria de forma “mista, sendo realizada virtualmente e com pontos de transmissão em locais indicados” a fim de “possibilitar a participação da população local”.
O evento foi realizado às 18h, do dia 14 de setembro de 2021, de forma virtual, tendo como base a Resolução Conama Nº 494, de 11 de agosto de 2020, que estabelece a possibilidade de realização de audiência pública de forma remota durante o período da pandemia. A audiência foi transmitida pelo site do Ibama, via YouTube e por rádio. Para a ocasião foram montadas “três fontes de apoio para acompanhamento da transmissão de forma presencial, sendo dois em Aracaju [SE] e um em Maceió, Alagoas”.
Ibama e Ministério Público Federal
Conforme a documentação do processo de licenciamento ambiental do SEAL da petroleira Exxon Mobil, esse está sendo conduzido pelo Ibama, por meio da Coordenação de Licenciamento Ambiental de Exploração de Petróleo e Gás – COEXP/CGMAC, pertencente à Diretoria de Licenciamento Ambiental (DILIC).
O procurador da República Flávio Pereira da Costa, que recomendou a suspensão de audiência pública virtual sobre o tema, agendada para 14 de setembro de 2021, bem como a realização de consultas prévias, livres e informadas às comunidades tradicionais, conforme determina a Convenção 169 da OIT, falou à nossa reportagem sobre o não cumprimento das regras e as possíveis consequências para a Exxon Mobil e ao próprio estado brasileiro.
“Em razão de a recomendação do Ministério Público Federal para que fossem realizadas as consultas prévias, livres e informadas não ter sido acatada, foi ajuizada ação civil pública contra o Ibama requerendo a suspensão da audiência pública para que antes fossem realizadas as consultas prévias e, ao final, a audiência pública acontecesse de modo presencial ou ao menos híbrido [também online]. O pedido de liminar não foi acatado nem pelo juiz federal de Propriá, nem em grau de recurso pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região.
O Ibama, segundo o Ministério Público, tem o dever de dar uma resposta a cada um dos questionamentos levantados fundamentadamente pelas comunidades tradicionais impactadas e por entidades associativas que as estão apoiando, “pois se trata de uma denúncia muito grave e que, se for confirmada, pode implicar a necessidade de reformulação de todo o EIA-RIMA”.
“O mais surpreendente é que o próprio Ibama reconhece, em documentos oficiais, alguns dos quais já levados a conhecimento da Justiça Federal, que as audiências públicas do processo de licenciamento ambiental não se confundem com as consultas prévias, livres e informadas estabelecidas na Convenção 169 da OIT. Porém, argumenta o Ibama que a falta de regulamentação das consultas prévias por norma interna da autarquia ou por decreto do presidente da República impede que elas sejam realizadas. É uma situação de looping sem fim: o Ibama não realiza as consultas prévias porque elas não estão detalhadas em normativo do órgão, e não regulamenta as consultas para que elas não sejam realizadas. Claramente é uma falta de interesse político para que as consultas prévias da Convenção 169 da OIT não sejam realizadas”, denuncia o promotor.
Ainda segundo ele, se o Tribunal Regional Federal da 5ª Região e a Justiça brasileira como um todo não acolherem os pedidos do MPF e, assim, as licenças ambientais dos empreendimentos que impactam as comunidades tradicionais sejam precedidas de consultas livres, prévias e informadas a tais comunidades, é possível haver a responsabilização internacional do Brasil com base na Convenção Americana de Direitos Humanos por violação a direitos humanos assegurados em tratados internacionais, o que dependeria de uma provocação inicial à Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
Histórico de desastre ambiental
A Exxon Mobil (antiga Esso) já promoveu impactos socioambientais negativos em outros locais, em desastres como a “maré negra”, vazamento de petróleo no Alasca, em 1989, e que, até 2013, era classificado como o maior desastre ambiental da história dos Estados Unidos. “A gente tem medo, porque já passamos um pouco por isso”, diz Ana, lembrando-se do vazamento de óleo no litoral brasileiro em 2019. Na época, as manchas iniciais apareceram a 700 km da costa brasileira (em águas internacionais) e atingiram mais de 250 praias do Nordeste. Em dezembro de 2021 a Polícia Federal concluiu que um navio petroleiro de bandeira grega teria sido o responsável pelo lançamento da substância no mar.
“Com esse derramamento de óleo que não foi aqui, mas que veio de longe e chegou ao nosso litoral, nós vimos a fome. As famílias tiveram que parar de pescar porque não tinham para quem vender. Ninguém queria comer o marisco que diziam que estava contaminado pelo óleo. Então os restaurantes fecharam, porque é uma cadeia, né?”, explica Ana Elísia.
Enquanto as atividades da Exxon Mobil seguem avançando pelo litoral, as comunidades tradicionais protestam e o MPF segue atuando. “Temos consciência de que é realmente muito grande a pressão para que o licenciamento da atividade de perfuração na Bacia de Sergipe-Alagoas, de interesse da empresa multinacional Exxon Mobil, seja concluído o mais rápido possível e de qualquer jeito, inclusive em detrimento dos direitos das comunidades tradicionais potencialmente impactadas pelo empreendimento. No entanto, entendemos que no Estado de Direito a legislação devem valer para todos, inclusive para aqueles dotados de maior poder econômico”, reforça o procurador Flávio Pereira.
“Eles diziam, na audiência, que a ‘plataforma é tão longe que vocês não vão ver da casa’. Quer dizer eles acham que, porque a gente não vê, então o óleo não existe? Que não pode chegar até aqui? É tratar o cidadão como besta, né? Essa é a preocupação toda da gente: o derramamento, fora tudo que vem junto com a instalação de estaleiros: muita gente, navios pra lá e pra cá, prostituição, vem droga, muita coisa envolvida assim. Não é só a perfuração”, conta Ana Elísia, a filha de marisqueiras, que defende o direito das mulheres e todos os trabalhadores de tirarem o seu sustento do mar, e mais, de preservarem a natureza.
Procurada pela Agência SIGNIS, a Exxon Mobil não se manifestou sobre as questões apontadas nesta reportagem.
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