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Uma noite de sábado, um casamento afro

Casamento afro ensina que não há espaço para o racismo na Igreja Católica

Há 3 anos - por Karla Maria
Uma noite de sábado, um casamento afro

Era um sábado de novembro deste 2021, 19h, e sentia-se o burburinho animado dos amigos e parentes que se uniam na Paróquia Sagrada Família para testemunhar o casamento de Ellen Oliveira e Orlando Junior, na Vila Carmela, Guarulhos. Os corredores da igreja estavam enfeitados com as cores do continente africano: preto, amarelo, vermelho e verde, e Gypsophilas estavam caprichosamente dispostas pelos bancos. Em uma das paredes, a imagem de Zumbi dos Palmares.

O noivo vestia o melhor sorriso, calça e túnica com tecidos costurados por mãos angolanas. Acompanhado por sua mãe, dona Elza Socorro Souza Farias, 73 anos, juntos percorreram o corredor central com passos alegres sob um canto tão simbólico quanto histórico para o povo negro, o povo brasileiro.

“Olha, que eu vim lá de longe. Perdendo raízes, enchendo porões. Cruzei tantos mares. Pisei novas terras, sofrendo grilhões. Mas, meu canto bonito. Nem dor, nem corrente jamais abafou. Pois, ser livre eu queria. Meu Deus és a força de quem confiou”. E assim, cantando Olha, Eu Vim de Longe, música da Campanha da Fraternidade de 1988, com letra de José Thomaz Filho e música de Cirineu Kuhn, o noivo chegou ao presbitério e se colocou à espera de seus padrinhos e de sua Ellen.

Padrinhos e noiva também vestiam as cores e tecidos que remontavam à história do povo negro, das cores da Etiópia. “Nossa intenção é lembrar vitórias dessa nação, como a Batalha de Adowa, assim como a única nação independente do continente africano”, explicou-me Junior dias antes de seu casamento. Na Batalha de Adowa, em 1º de março de 1896, os etíopes venceram invasores europeus e tornaram-se o único país africano a não ser colonizado.

Orlando Junior é professor e mestrando em ciências da religião. Membro da Pastoral Afro, ao lado de sua esposa historiadora e também professora nos ajudou a corrigir graves erros de interpretação e/ou ignorância acerca de uma missa inculturada, ou da como é popularmente chamada “missa afro”.

“A popular missa afro é um rito inculturado alicerçado por documentos como Sacrossantum Conciluim e o Documento de Santo Domingo. Nela ocorrem algumas particularidades como o atabaque nos cantos, canções de luta do povo afrodescendente e, no figurino, roupas femininas como vestidos coloridos e turbantes e homens com batas e eketés [adereço de cabeça], tipicamente afros”, ensinou o noivo.

Já a noiva Ellen chegou aos braços de Orlando Junior vestindo branco, vermelho e preto. “Eu procurei fazer uma inculturação. A gente não só participa da Pastoral Afro como temos uma militância pela causa do povo preto. Incluímos simbolismos que têm significados importantes e pedagógicos sim, porque há pessoas que realmente são ignorantes e o racismo estrutural causa isso. Nós somos professores, então faz parte do que somos”, disse Ellen.

A cerimônia foi celebrada pelo padre Marcos Alves. A primeira vez que o vi, ainda seminarista, visitava os presídios para levar algum conforto e a Palavra de Deus aos presos, que não por acaso eram jovens negros como ele: resultado de um complexo sistema estrutural racista. Ao celebrar o casamento de Ellen e Orlando, padre Marcos falou dos desafios que vê à frente da vida do casal e da Pastoral Afro-Brasileira.

“Os desafios da nossa pastoral são muitos, entre eles sobreviver. Somos sobreviventes da História. Diante de uma pandemia, sim, mas diante de um sistema que nos aprisiona, não mais com correntes de ferro, mas com correntes ideológicas que querem nos aprisionar, nos escravizar, e isso nós não vamos aceitar”, disse durante sua homilia.

Para padre Eduardo Binna, cocelebrante, celebrar um matrimônio com alguns elementos da cultura afro-brasileira é importante porque valoriza a diversidade do povo brasileiro, em que os negros são maioria. “Mais de 50% da população se declara negra e parda, mas é muito mais que isso. Celebrar com elementos da cultura é valorizar a cultura dos nossos ancestrais que construíram o país. Veja, o rito é romano. O próprio Concílio Vaticano 2º permite e incentiva a Igreja a fazer celebrações inculturadas. Nós ainda estamos em um nível de adaptação, que é um nível de inculturação muito branda só com atabaques e danças, e isso é muito superficial. Precisamos ter um aprofundamento mais denso, em que elementos próprios da cultura afro-brasileira sejam incorporados à liturgia romana”, avalia o liturgista.

Padre Eduardo é membro da Pastoral Afro desde 1987 e avalia que as críticas que fazem à missa afro têm raízes mais profundas e estão conectadas com a realidade da sociedade brasileira. “Nós temos muitas pessoas racistas e que veem elementos de outras culturas, principalmente da cultura afro-brasileira, com certo preconceito. A grande ativista e filósofa Angela Davis diz ‘não basta não ser racista, é preciso ser antirracista’, e eu adoto essa filosofia para mim. Uma missa dessas serve para quebrar com os preconceitos, com os tabus. Nós não precisamos dar satisfação e nem explicar nada para ninguém. Aqui não há um rito sincrético. É um rito romano com elementos da cultura afro-brasileira”, ensinou o padre e professor.

Os atabaques e as cores chamam atenção e alegram a liturgia, convidando os celebrantes a participarem ativamente da missa. Antes das leituras houve a entrada da imagem de Nossa Senhora Aparecida e São Benedito, ambas levadas até o altar por mulheres pretas da comunidade, que dançavam sob o canto Negra Mariama, composto pela teóloga Maria Cecília Domezi. “Negra Mariama chama para enfeitar. O andor porta estandarte para ostentar. A imagem Aparecida em nossa escravidão. Com o rosto dos pequenos, cor de quem é irmão”.

No ofertório, mulheres entraram com cestas carregadas de frutas e no canto final, de novo, os atabaques convidavam as pessoas para a dança, a liberdade efetiva, uma vida sem correntes.

40 anos da Missa do Quilombo

O Santuário de Aparecida foi palco da 25ª Romaria das Comunidades Negras no dia 6 de novembro, que reuniu representantes de pastorais afro-brasileiras de várias dioceses, marcando o início das celebrações e manifestações do mês da Consciência Negra. E foi também na casa da mãe Aparecida que foram recordados os 40 anos da Missa dos Quilombos, celebrada em 22 de novembro de 1981 na praça em frente à Igreja do Carmo, em Recife (PE).

“Reza a tradição que foi nessa praça que a cabeça de Zumbi dos Palmares foi exemplarmente exposta para sinalizar a derrota do Quilombo dos Palmares. Ainda que não comprovada historicamente, foi em função dessa história que o movimento negro reivindicou e conseguiu que se erigisse um monumento a Zumbi na praça, monumento este feito pelo escultor Abelardo da Hora”, registrou Isabel Cristina Martins Guillen, doutora em História pela Unicamp.

A Missa dos Quilombos foi idealizada pelo então arcebispo de Olinda e Recife, dom Helder Câmara, escrita pelo então bispo de São Félix do Araguaia (MT), dom Pedro Casaldáliga, e pelo poeta Pedro Tierra, com músicas de Milton Nascimento. Foi presidida pelo então arcebispo da Paraíba, dom José Maria Pires, também conhecido por dom Zumbi, por sua ligação com o movimento negro.

Naquela ocasião, dom José Pires disse em sua homilia: “Estamos presenciando hoje e aqui os sinais de uma nova aurora que vem despertar a Igreja de Jesus Cristo. No passado ela não amaldiçoou o pelourinho, não abençoou os quilombos, não excomungou os exércitos que se organizaram para combatê-los e destruí-los. A Igreja não estava com os negros e hoje parece que começa a estar. Começa a nos querer bem”.

Em entrevista a essa reportagem em dezembro de 2014, dom José Maria Pires confidenciou que como padre, por várias vezes, sentiu o racismo nas paróquias por onde passava. “[...] Como bispo, a coisa ainda veio”, disse na ocasião com seus 95 anos de idade, completando: “Eu me honro de ser negro. Sou negro no corpo e na alma. Olha meu cabelo, meu nariz, meu coração só podia ser de negro”. Dom José Maria Pires morreu em 27 de agosto de 2017 na mesma cidade em que conversamos, Belo Horizonte (MG).

Missa dos Quilombos iniciou um processo de mobilização e articulação dentro de uma série de lutas do Movimento Negro nos anos 1980, que culminou na Campanha da Fraternidade de 1988, nos 100 anos da Abolição, com o tema A fraternidade e o negro e o lema Ouvi o clamor deste povo. Dali foi criada a Pastoral Afro-Brasileira da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que teve dom José Maria Pires, o nosso dom Zumbi, como um de seus entusiastas.

A Pastoral Afro-Brasileira segue viva nas missas entoadas pelos atabaques, nos encontros e ações que materializam a luta que era a do próprio Cristo: que todos tenham vida e vida em dignidade.

Confira a oração Mariama proferida por dom Helder Câmara durante Missa do Quilombo, em 20 de novembro de 1981: 

https://www.youtube.com/watch?v=pUtmlqKCCXk&t=23s.

Galeria de imagens

Comentários

  • Lúcia Castor

    Parabéns pelo texto simples e profundo ,que nos ajuda a sermos verdadeiros seguidores de Cristo,entendo que também nos vivemos a via sacra e ajudamos Jesus no resgate da humanidade para Deus

  • Orlando Junior

    Parabéns, Karla! Relato fidedigno do 1° sacramento do matrimônio inculturado da diocese guarulhense. Muito obrigado!