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O trabalho escravo ainda hoje, aí do seu lado

Mais de 19 mil pessoas foram resgatadas em situação de trabalho escravo no Brasil na última década, e a Comissão Pastoral da Terra tem protagonismo nesse embate há mais de 40 anos

Há 3 anos - por Karla Maria
Três menores são resgatas pela Polícia Federal em Bady Bassit (SP), vítimas do trabalho escravo: situação degradante
Três menores são resgatas pela Polícia Federal em Bady Bassit (SP), vítimas do trabalho escravo: situação degradante

A vulnerabilidade social, o desemprego, a fome e a desesperança no país abrem espaço para relações precárias de trabalho, de submissão e violência. Isso não é de hoje. A escravidão, que existe desde o início da História, mas só atingiu uma escala industrial quando colonos europeus levaram à força 12,5 milhões de africanos para a América, é uma das provas da capacidade humana de provocar barbáries.

O Brasil, uma nação cuja história e identidade estão construídas a partir – também – de cerca de 400 anos de escravidão, carrega ainda hoje diferentes modos de negócio sustentados a partir da exploração de seus trabalhadores e trabalhadoras, como oficinas de costura. No dia 10 de novembro, a Polícia Federal prendeu em flagrante um homem que mantinha três mulheres menores de idade sob condições análogas à escravidão em uma residência em Bady Bassitt (SP), cidade a 400 quilômetros da capital paulista. No local, as autoridades policiais (federais e militares) constataram a situação degradante e as resgataram do imóvel.

“Verificou-se ainda que o boliviano preso em flagrante mantinha total controle sobre as vítimas, inclusive restringindo sua locomoção privando-as do direito de ir e vir. As vítimas eram menores de idade, uma delas está grávida, e todas estão em situação irregular no País”, disse um dos policiais durante a autuação.

As condições eram subumanas: cômodos pequenos e sujos sem ventilação e iluminação adequadas. Fiação clandestina com várias ligações e fios soltos sobre a cabeça das jovens, que costuravam por horas a fio, sem a contrapartida de descanso e salário. Eram prisioneiras.

Tal realidade, segundo o jurista Silvio Almeida, está calcada na relação entre liberalismo e escravidão que permitiu a naturalização da violência colonial, a desumanização de não europeus e a destruição de formas de vida não compatíveis com a reprodução das sociedades mercantis.  E isso no ontem e no hoje da História.

“Locke, Montesquieu, Hume, Adam Smith, Kant e Hegel defenderam ou justificaram o colonialismo europeu e até o racismo. Por isso é importante conhecer estes autores e entender como eles moldaram a cabeça mesmo daqueles que não os leram”, escreveu o professor em seu artigo Negar a relação entre liberalismo e escravidão está no mesmo nível do terraplanismo.

Não conhecemos as leituras dos que ainda hoje escravizam, mas seus atos são famosos: existência de locais insalubres para o trabalho, a proibição do ir e vir, a retirada de documentos e objetos pessoais, Clbem como o não recebimento de salário e de tempo para o descanso ou almoço são algumas das práticas diagnosticadas como análogas à escravidão tipificadas no artigo 149 do Código Penal.

Na última década, mais de 19 mil pessoas foram resgatadas em situação de trabalho escravo no Brasil. Sim, em pleno século 21. Ao todo, 1.387 operações foram realizadas. O estado de Minas Gerais foi o que mais registrou resgatados na década (28,88%), seguido por Pará (10,97%) e São Paulo (8,39%). Os dados são da Subsecretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), órgão do Ministério da Economia, e foram obtidos pela Fiquem Sabendo por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI). 

As atividades mais comuns foram criação de bovinos para corte (15,96%), construção de edifícios (11,58%) e cultivo de café (7,59%). Em números absolutos, 6.696 pessoas foram resgatadas nesses setores nos últimos dez anos.


São situações históricas e recorrentes no Brasil, apresentadas também no filme 7 Prisioneiros, disponível na Netflix. Escrito por Thayná Montesso e Alexandre Moratto e dirigido por ele, o filme apresenta a escravidão contemporânea e o tráfico de pessoas a partir da história de quatro rapazes que, recém-chegados a São Paulo, buscam ajudar no sustento de suas famílias e vão trabalhar em um ferro-velho de maneira subumana, tais quais as jovens em Bady Bassitt, e se tornam prisioneiros de um sistema enraizado na cultura e na história do país.

 

“Quando o trabalhador é tratado como ‘coisa’, como um objeto descartável, onde não tem um local adequado para dormir, instalações sanitárias decentes, entre outras indignidades, não podemos considerar isso como trabalho” (Cláudia Ribeiro, auditora-fiscal do Trabalho)

 

Tais situações são denunciadas desde 1975 pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), que, observando o modo de “colonização” e exploração da Amazônia pelo Estado brasileiro viu o dito desenvolvimento submeter os seus cidadãos e migrantes às formas mais degradantes de trabalho, aos diversos tipos de violência e à morte.

“A CPT de Conceição do Araguaia começa a fazer grandes denúncias, talvez a maior delas contra a Fazenda Vale do Rio Cristalino, que repercutiu muito na imprensa internacional, enquanto a imprensa no país fez silêncio”, disse padre Ricardo Rezende Figueira, que já foi perseguido por denunciar junto à CPT a exploração de trabalhadoras e trabalhadores, o tráfico de suas vidas e dignidades na Diocese de Conceição do Araguaia.

Segundo documentos da própria CPT, a Comissão nasceu em junho de 1975, durante o Encontro de Bispos e Prelados da Amazônia, convocado pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), realizado em Goiânia (GO). Foi fundada em plena ditadura militar, como resposta à grave situação vivida pelos trabalhadores rurais, posseiros e peões, sobretudo na Amazônia, explorados em seu trabalho, submetidos a condições análogas ao trabalho escravo e expulsos das terras que ocupavam.

“Todos os agentes de pastoral que se envolviam em questões de terra e conflito fundiário corriam riscos. Eu perdi muitos amigos que foram assassinados lá: padre Josimo, irmã Dorothy, Gabriel Pimenta, advogado que contratamos para trabalhar no Tocantins depois foi para Marabá, Paulo Fonteles, que era outro advogado, a irmã Adelaide Molinari. Então, muita gente morreu assassinada, como João Canuto, Expedito Ribeiro de Souza, Sinhozinho, Belchor, Brás, Ronã”, contou padre Ricardo lembrando e lamentando os seus, os nossos mortos.

“Lembro-me de quando Raimundo Ferreira Lima foi assassinado. Ele era agente de pastoral, um trabalhador rural que auxiliava a Paróquia de São Geraldo do Araguaia. Foi sequestrado uma semana antes das eleições sindicais e a partir da morte dele, em 22 de maio de 1980, eu comecei a registrar as mortes”.

O trabalho do padre resultou no importante relatório divulgado pela CPT anualmente e responsável por denunciar e pautar a imprensa sobre a morte daqueles cujas vidas são esquecidas. Sabe-se, contudo, que as listas e as denúncias eram e de certo modo ainda são subnotificadas.

Em janeiro de 1992, Rezende esteve na Organização das Nações Unidas (ONU), em Genebra, denunciando o governo brasileiro por omissão e informando a comunidade internacional de que havia trabalho forçado no Brasil, assassinato de trabalhadores e crimes nos conflitos fundiários.  Doutor em ciências humanas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o padre participa do Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo e avalia que esse tipo de trabalho continua no país, mas de outra forma.

“Não está mais presente na mesma forma e na mesma grandeza a violência. Essa deixa de ser a regra. Os fazendeiros e os empresários têm medo das fiscalizações chegarem e constatarem os assassinatos e crimes; então, começam a dar uma aparência de legalidade. Até 1995 era muito raro as empresas agropecuárias contratarem diretamente os trabalhadores para atividades temporárias (derrubada de fresta, fazer cerca, pasto). Para atividade temporária, se contratava pistoleiro que se tornava empreiteira; então, para dar ar de legalidade, essa figura do gato vai desaparecendo e entra o ar de legalidade, mas as condições degradantes e exaustivas permanecem”.

Em 1995, o Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM) é criado. Em 2003, há uma mudança no artigo 149 do Código Penal Brasileiro, que passa a reconhecer como crime de escravidão não apenas o trabalho sob coerção de armas e da geografia, que representa aquele que fica impedido de ir e vir.

De acordo com a Auditora-Fiscal do Trabalho, Cláudia Ribeiro, que atuou durante oito anos no GEFM, a alteração do Código Penal veio corroborar a opinião de juristas da Inspeção do Trabalho e Ministérios Públicos. “Só a Inspeção do Trabalho, com a sua expertise, adquirida ao longo dos anos, poderia identificar essas situações ‘in loco’”. Segundo ela, em entrevista à colega Solange Nunes do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho, o trabalho escravo tira do trabalhador direitos básicos como comida decente, respeito e liberdade de ir e vir. “Quando o trabalhador é tratado como ‘coisa’, como um objeto descartável, onde não tem um local adequado para dormir, instalações sanitárias decentes, entre outras indignidades, não podemos considerar isso como trabalho”. 

Em julgamento recente, de agosto de 2021, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu que não é necessário provar a "coação física da liberdade de ir e vir ou mesmo o cerceamento da liberdade de locomoção" para configurar o crime de trabalho. E a decisão geral se deu a partir de um caso com denúncia feita em 2005, com base em fiscalização do ministério do Trabalho e Emprego nas Fazendas São Marcos I, II e III, no município de Abel Figueiredo (PA), quando foram aliciados 52 trabalhadores para executar serviços rurais em condição de trabalho degradante.

Para o ministro Luis Fux, a ocorrência de casos de trabalho escravo "revela a existência de numerosos e inaceitáveis casos de violação aos direitos humanos, especificamente no que se refere ao conjunto de trabalhadores rurais e urbanos brasileiros, geralmente apurados, in loco, por fiscalizações trabalhistas, em que se constata avassaladora realidade de autuações com as quais o Estado Democrático de Direito não deve demonstrar complacência", disse em sua decisão.

Segundo levantamento do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho, os dados compilados pelo presidente do STF mostram que quase 132 anos após a abolição da escravatura no Brasil, situações análogas ao trabalho são comuns.

 

“Estamos o tempo todo enfrentando ações de tentativa de desmonte da fiscalização. É sintomático que no início do governo de Bolsonaro ele tenha acabado com o Ministério do Trabalho (MT) e os auditores tenham sido integrados ao [Ministério] da Economia, isso revela algo muito interessante: o trabalho se submete à economia" (Padre Ricardo Rezende Figueira)

 

Os dados do Radar da Subsecretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) do Ministério do Trabalho e Previdência, em 111 dos 267 estabelecimentos fiscalizados em 2019, houve a caracterização da existência dessa prática com 1.054 pessoas resgatadas em situações desse tipo. O levantamento aponta ainda que, em 2019, o número de denúncias aumentou, totalizando 1.213 em todo o país, enquanto em 2018 foram 1.127.

“A lei previa que as empresas autuadas perdessem suas propriedades caso fosse constatado o uso de mão de obra escrava. Isso foi aprovado, mas nunca aplicado. Ninguém perde a terra e o problema é que o artigo fala do trabalho análogo ao escravo. A bancada ruralista fala: o trabalho análogo não é o trabalho escravo. Quem fez a lei diz não: o trabalho análogo é o trabalho escravo”, ponderou padre Ricardo sobre as tantas narrativas possíveis em defesa do “desenvolvimento” a qualquer custo.

Para ele, o trabalho escravo é uma ofensa ao país, à nação, e exige reparação e pressão da sociedade civil para que cessem os retrocessos na fiscalização. “Houve avanços até o período da Dilma [Rousseff], mas depois do [Michel] Temer a situação se tornou mais complexa. Há anos que não há concursos para novos auditores fiscais. Na pandemia, por exemplo, não podiam pegar avião, usar ônibus. O governo [federal] começou a criar obstáculos e a dificultar não só o processo de seleção, mas também os recursos financeiros começaram a diminuir”.

A lista suja é um dos mecanismos de denúncia e publicização das empresas que cometeram crimes contra o país ao manter trabalho escravo. Durante o governo da ex-presidente Dilma Rousseff, setores empresariais entraram com ação contra a lista suja, que chegou a ser suspensa temporariamente. No governo de Michel Temer a lista não foi publicada e teve de ser objeto de uma ação para voltar a ser publicada.

“Estamos o tempo todo enfrentando ações de tentativa de desmonte da fiscalização. É sintomático que no início do governo de Bolsonaro ele tenha acabado com o Ministério do Trabalho (MT) e os auditores tenham sido integrados ao [Ministério] da Economia, isso revela algo muito interessante: o trabalho se submete à economia. Então, não é o país voltado ao mundo dos trabalhadores, mas um país submetido às regras da economia. E agora, vimos que o MT foi recriado para acomodação dos aliados políticos”, denunciou o padre.

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