Pandemia aumenta exposição de mulheres pobres à prostituição e a diversos tipos de violência
Desemprego, pobreza e prostituição são algumas das violências silenciosas que impactam a vida das mulheres no país
As paredes daquela casa estavam cobertas de quadros com rostos e frases de mulheres fortes. A biblioteca guardava livros sobre educação, história, teologia, feminismo e fé. Aquele era um espaço acolhedor, a sede da Pastoral da Mulher Marginalizada (PMM), localizada no bairro da Luz, que nestes tempos de pandemia acolheu e socorreu centenas de mulheres.
A realidade atual tem demandado cada vez mais o protagonismo da PMM e de todas as iniciativas que busquem atender as mulheres no país. Pesquisa divulgada pelo Datafolha em 7 de junho deste ano, a pedido do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), revelou que cerca de 17 milhões de mulheres sofreram violência física, psicológica e sexual no ano de 2020.
Ainda de acordo com o levantamento realizado, uma em cada quatro mulheres acima de 16 anos afirma ter sofrido algum tipo de violência. A violência doméstica, que no ano de 2019 representava 42%, subiu para 48,8% no ano de 2020, coincidindo com o início da pandemia de Covid-19.
“Infelizmente, houve aumento da violência doméstica e da prostituição, tanto que a pastoral teve que aumentar o atendimento assistencial com distribuição de cestas básicas” (Fabrícia Paes, da Pastoral da Mulher Marginalizada)
Não por acaso, a PMM está ancorada ali no bairro da Luz, na capital paulista. Um bairro histórico de beleza arquitetônica ímpar, que guarda um conjunto de prédios tombados e com eles memórias de tortura e resistência de homens e mulheres que durante a ditadura civil-militar (1964-1985) foram torturados.
Em nossos tempos, as violências se manifestam de outras maneiras. Estão no desemprego, na pobreza, na dependência química, na prostituição.
Com olhar específico às mulheres em situação de vulnerabilidade social, a Pastoral da Mulher Marginalizada buscou e busca amenizar os impactos sociais também da pandemia, cujas violências se somam nos ombros e corpos das mulheres. “A missão da pastoral é construir relações humanas e humanizadoras e não cabe aceitar qualquer tipo de violência; então, nós nos posicionamos ao lado da mulher, escutando-a de modo ativo, e a partir da escuta a gente acolhe a situação dessa mulher e a apoia para que ela saia do ciclo de violência”, explica Fabrícia Paes, coordenadora nacional da PMM.
Fabrícia destaca que durante a pandemia, as formas de violência foram intensificadas na vida das mulheres em vulnerabilidade, em especial as que encontram na prostituição seu modo de sobrevivência. “A mulher em situação de prostituição já vive em uma situação de exclusão, de marginalização e preconceito. Então, é preciso desconstruir muitas coisas. Quando a gente fala de violência contra a mulher, a gente fala de violência de gênero, de desigualdades: algo histórico. O problema é muito mais profundo. Por isso, é preciso desmistificar, dialogar e refletir para que ela [a mulher] não se sinta ainda mais submissa, julgada, como já acontece em situação de prostituição”.
Na prática, o trabalho das agentes da pastoral é estar junto e socorrer, acolher. “Infelizmente, houve aumento da violência doméstica e da prostituição, tanto que a pastoral teve que aumentar o atendimento assistencial com distribuição de cestas básicas”, disse Fabrícia, lembrando também da distribuição de kits de higiene e máscaras para que as mulheres pudessem se prevenir e sobreviver.
Conheci Maria (nome fictício) com seus 60 anos, em uma tarde de setembro, na sede da pastoral da PMM, aquela casa de paredes enfeitadas pelo sorriso e luta de tantas que nos antecederam. Maria estava lá para retirar uma cesta básica, o que a ajudaria a se manter alimentada assim como a sua neta. Ela tem duas filhas e duas netas.
Estava ali também para falar com as demais mulheres que participavam de uma roda de conversa. Muito católica e devota de São Judas Tadeu, Maria sente-se acolhida, respeitada. “Conheci a pastoral quando estava no Parque da Luz, e me falaram que aqui entregavam cesta básica. Aqui me sinto bem. Não sou discriminada, me sinto em casa. Sinto acolhimento mesmo”.
“Agora você escolhe o seu lado, eu não estou disposta a tudo. Para sobreviver tem que agradar a gregos e troianos. Nós mulheres pobres estamos sujeitas a tudo isso. É preciso muita força. Eu tenho fé”. (María, nome fictício)
Maria se prostituiu por muitos anos, mas não confirmou com exatidão quantos e quais. Imigrante, disse que a “opção” foi por necessidade e que sempre se protegeu de situações perigosas, não se deixando levar pelas drogas. “Há meninas, mulheres, que apanham de seus clientes por se negarem a fazer algum tipo de serviço. E olha, são homens que deixam suas famílias para buscar prazer na rua”.
A avó aponta que desde que chegou ao Brasil sofre diferentes violências. “Principalmente a descriminação por ser de outro país. Chamam-me de gringa. Até hoje sinto isso. Sou mãe e avó brasileira. Explico que sou do Mercosul, mas as pessoas não têm orientação, estudo. Os homens brasileiros nos discriminam. Aqui já fui assaltada, me chutaram no chão e já apanhei de marido também. Eu larguei ‘ele’”.
Maria conta que durante os momentos mais difíceis de sua vida – e foram vários – precisou se prostituir. “Já fiz alguns programas na Luz com homens de nível. Conheci um ‘cara’ no Bom Retiro, dono de várias lojas. Eu estava muito necessitada, precisando mesmo de dinheiro. Ele nem fez sexo, fez carinho no pé. Eu achei bom. Acabei gostando dele. Ele me pagava bem”.
Mas, na maioria das vezes, as situações não se assemelham em nada aos filmes românticos. “Já passei cada coisa, medo da morte mesmo. Mas antes de sair sempre pego minha Bíblia, porque Deus me protege, porque se eu morrer ‘era só uma prostituta’”.
Maria parou de fazer programa antes da pandemia. “Eu não estou mais trabalhando. Acho que morreu muita gente. Perdi colegas para essa doença. Eu vivo de auxílio emergencial e faço faxinas. Agora vivo só disso. Pago meu aluguel de R$ 500. Fico só com uma pessoa, com um senhor que é trabalhador, mas não o amo”.
As mulheres em vulnerabilidade social que buscam o sustento na prostituição também encontram outro obstáculo: a máfia. “Precisa pagar comissão, pedágio por noite, e quando vai embora tem que dar um agrado. Nas boates também é assim”, revela Maria, que já precisou pagar “pedágio” também para o rapa – a fiscalização de São Paulo – quando tinha seu carrinho de milho na rua.
De olhos pintados e longos cabelos pretos, poucos fios brancos, Maria foi incisiva ao revelar que a prostituição está conectada à vida do crime. “Agora você escolhe o seu lado, eu não estou disposta a tudo. Para sobreviver tem que agradar a gregos e troianos. Nós mulheres pobres estamos sujeitas a tudo isso. É preciso muita força. Eu tenho fé”.
A coordenadora da PMM Fabrícia Paes lembra que a violência contra a mulher não escolhe raça, classe ou etnia, mas “é claro que uma mulher em situação de vulnerabilidade está mais exposta”. Ela conclui: “Isso a gente percebe nos nossos atendimentos”.
Tipos de violência e apoio
“Quando falamos em violência já pensamos em violência física, mas e a psicológica, a patrimonial? Uma ameaça, uma perseguição, o próprio isolamento. A mulher sofre o processo de danos emocionais, da autoestima. Eu diria que a violência psicológica é extremamente letal”, avalia Fabrícia.
Ela e a pastoral querem ajudar as mulheres a identificar tais violências e a se desligar desses ciclos. “Uma mulher em relação de violência não vai se libertar do dia para a noite. É um processo, desde ela reconhecer que é digna de ter uma vida sem violência e sem agressão, e de que ela pode contar com apoio”, pontua.
A pastoral reconhece a dificuldade em revelar tais situações de violência ao poder público: o medo do agressor, a dependência financeira, a presença de filhos nessa relação ou mesmo a falta de confiança na punição do agressor. Elementos desencorajadores.
Sabendo disso e com o objetivo de acolher as mulheres, a PMM tem realizado atendimentos via WhatsApp, com videochamadas ou troca de mensagens. Se você precisa de apoio entre em contato pelo telefone (11) 94599-6811.
- Central de atendimento de apoio à mulher em situação de violência: 180. O Ligue 180 é um serviço gratuito do governo federal que atende 24 horas os pedidos e informações sobre violência contra a mulher, registra as denúncias de violência e faz o encaminhamento, quando necessário, para vários órgãos da rede de atendimento.
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