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Para além da pandemia, o testemunho

Agentes da Pastoral da Saúde se adaptam, mas não cessam trabalho e a “presença” durante a pandemia

Há 3 anos - por Karla Maria - @KarlaMariaBra
Pastoral da Saúde: testemunho em tempos de pandemia
Pastoral da Saúde: testemunho em tempos de pandemia (foto por Carlos André Marques/ Freepik)

Às 8h da manhã a campainha da casa de dona Bela toca e nela uma dupla de senhoras de cabelos brancos a espera para mais uma visita. São agentes da Pastoral da Saúde, que em um revezamento em duplas, visitam a família Souza, na Vila Iório, periferia de São Paulo, há 20 anos, o mesmo tempo que a viúva cuidou de seu marido acamado por um acidente vascular cerebral (AVC), popularmente conhecido como derrame.

Carregam consigo uma Bíblia e uma caixinha metalizada redonda e nela, o próprio Cristo na hóstia consagrada, de acordo com a fé dos católicos. O encontro acontecia na sala ou no quarto, ao lado do enfermo, senhor Vivaldo, que faleceu em abril de 2020. Em cima de um móvel, um paninho era aberto, a vela era acesa, a Bíblia era lida. Naquele gesto, as agentes da Pastoral da Saúde rezavam, prestavam sua solidariedade, partilhavam a Palavra, a dor. Depois uma Ave-Maria e um cafezinho. Criavam laços.

Foi assim até a chegada de um novo coronavírus ao mundo. No Brasil, o primeiro caso de Covid-19 foi confirmado em 26 de fevereiro de 2020, e a primeira morte em 17 de março do mesmo ano. Até o fechamento desta reportagem, a pandemia já havia matado mais de 512 mil pessoas. Sequelas incomensuráveis para a alma do povo brasileiro.

“Depois que esse vírus chegou, não recebemos mais a visita da pastoral e está certo, precisamos nos cuidar a distância. Eu recebo telefonemas ou visita só do portão. Foi assim na Páscoa. Eu já tomei vacina, as duas doses, mas ainda é preciso manter o distanciamento até que todos sejam vacinados”, lamentou Bela, a baiana de 82 anos.

A dupla que acompanhou a família por tanto tempo faz parte de um exército de cerca de 100 mil voluntários, membros da Pastoral da Saúde, que agem e têm a responsabilidade de atuar como uma pastoral de conjunto junto às famílias. Uma pastoral que quando chega a casa consegue identificar se a pessoa é portadora de alguma doença, como a dependência química, aids, se alguma criança está anêmica, se uma gestante está sem o pré-natal. Identificado o problema, é feita a orientação de buscar o postinho de saúde e o encaminhamento para as outras pastorais, como da Criança, da Aids, da Sobriedade, entre tantas outras.

 

"A falta de oxigênio foi falta de planejamento dos governos, das três instâncias. Para quem esteve presente aqui foi algo desesperador”. (Paulo Sarraff, agente da Pastoral da Saúde em Manaus)

 

É uma gente que busca consolar, estar junto, apoiar as famílias, doentes e profissionais da saúde nos momentos mais difíceis, e a pandemia, sem dúvida, tem sido um desafio atípico dada a necessidade de isolamento social.

“A Pastoral da Saúde é uma entidade cívico-religiosa que, de forma solidária, leva a presença de Jesus junto aos doentes que sofrem, dentro das unidades de saúde, trabalhando a humanização junto aos profissionais também. Atuamos na promoção e prevenção da saúde e na questão político-institucional, em que o agente representa dentro dos conselhos municipais”, conta Alex Mota, membro da pastoral desde 1997.

Mota é coordenador nacional da Pastoral da Saúde e fala dos desafios enfrentados pelos agentes neste período de exílio das atividades presenciais. “A pastoral vai ao encontro do outro e, diante dessa situação de pandemia, tivemos que nos adaptar à tecnologia. Ao invés das visitas presenciais, passamos a usar o WhatsApp. Já para as equipes de coordenação, nós usamos as plataformas”.

Yone Souza Rezende Maria confirma. Ela tem 63 anos de idade e faz parte da pastoral em Guarulhos, que atende sete hospitais. “Estamos meio que parados, mas rezando muito. Estamos também em contato com os médicos e doentes. Ligamos, enviamos mensagens, mas assim que todos tomarmos a segunda dose da vacina retomaremos com segurança”, diz a agente que ainda tem medo de se expor e expor os seus.

A quase 4 mil quilômetros da Paróquia Santo Antônio, onde Yone atua, está Paulo Sarraff, agente da pastoral em Manaus, capital do Amazonas, cidade que em fevereiro deste ano foi “asfixiada” pela falta de gestão de recursos para a manutenção da vida dos manauaras.

“A falta de oxigênio foi falta de planejamento. Alguns agentes nossos perderam parentes. Eu perdi minha irmã caçula, uma cunhada e um sobrinho em função do despreparo do SUS [Sistema Único de Saúde], que é sim maravilhoso, porém não estava preparado. A falta de oxigênio foi falta de planejamento dos governos, das três instâncias. Para quem esteve presente aqui foi algo desesperador”.

Sarraff é administrador e coordena a ação da pastoral em Manaus, uma ação desafiadora sob diversos aspectos. Dos 400.781 casos confirmados de Covid-19 no Amazonas até 27 de junho, 186.096 eram de Manaus (46,43%) e 214.685 do interior do estado (53,57%). Entre as vítimas fatais há o registro de 9.134 óbitos confirmados na capital e, no interior, 4.137. Os dados são do Boletim Epidemiológico do governo do Estado do Amazonas.

“Imagine que para chegar a alguns municípios precisamos ir de barco. Uns por sete horas, outros por dois dias”, explica Sarraff. Nem sempre é possível arrumar um barco. Os preços da gasolina e do diesel também desafiam a pastoral, que conta com um fundo solidário, mas também de esforços individuais, seja na vaquinha para o combustível ou para a compra de alimentos para cestas básicas, além de máscaras, itens de higiene etc.

O combate continua no Instituto Emílio Ribas

De volta a São Paulo, percorremos os corredores do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, coração do enfrentamento de pandemias no país desde 1914, quando ainda era conhecido por Hospital do Isolamento. Varíola, febre amarela, difteria, febre tifoide, meningite e aids foram algumas das doenças enfrentadas.

São nesses corredores, com 131 anos de histórias de superação a vírus e doenças, que agentes da Pastoral da Saúde têm desempenhado também na pandemia de Covid-19 esforços que muitas vezes superam o humano.

“Eu acompanhei uma paciente durante 159 dias na UTI [Unidade de Tratamento Intensivo]. Eu fazia vídeo chamadas para a paciente ver a família, mesmo com uma traqueostomia. Quando a família podia vir, ela ficava do lado de fora do quarto. Criamos uma amizade muito grande”, conta Andrea Salles Pavani, que se tornou família sendo presença no Natal, Ano Novo, aniversário. A paciente faleceu um mês depois de ter alta.

 

"Se pudesse mostrar ao vivo e a cores o que um doente passa aqui dentro, é algo que assusta." (Pe. João Mildner)

 

Andrea é assistente social, agente da Pastoral e da equipe de cuidados paliativos, e oferece o calor de suas mãos, um carinho, uma palavra animadora, de conforto. “A intubação é o maior medo do paciente. É um momento quase que de despedida. Uma jovem de 33 anos deixou uma lista para sua companheira com senhas, porque ela imaginou que não iria voltar, e de fato ela não voltou”.

Andrea chega a se despedir de pacientes de três a quatro vezes por semana no Emílio Ribas. Admite ser sofrido. A pastoral também é apoio para os profissionais de saúde. “Na sexta-feira uma paciente de 30 anos foi a óbito e o médico despencou, ele disse ‘nós não estamos agüentando mais’, então, em muitos momentos nós somos para-raios desta equipe, porque é muito sofrimento, é além do que o ser humano suporta”, desabafa a assistente social.

Sandra Santos, pedagoga responsável pela equipe de humanização do Instituto Emílio Ribas é testemunha da doação dos agentes da pastoral. “É muito lindo de ver todo o acolhimento que ela prestou à família, ao paciente. [...] Nós tínhamos uma demanda de óbito mensal, que de repente começou a ser diário, então só o fato de você encontrar padre João [Mildner], vê-los ali, saber que não estamos sozinhos, a gente se emociona”.

A Pastoral da Saúde na Arquidiocese de São Paulo é liderada pelo padre João Inácio Mildner, que foi nomeado capelão responsável pelas atividades pastorais no Instituto de Infectologia Emílio Ribas pelo então cardeal arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, em 1992. Hoje, ao lado do padre Renato Cangianeli, segue dando assistência religiosa e espiritual a toda a comunidade hospitalar com o lema “servir sempre”.

Há 29 anos acompanhando os impactos de vírus e doenças na fragilidade humana, padre Mildner confessou sua dor. “Dizem que homem não chora, mas não perguntem para o travesseiro dele. Muitas vezes a gente para, reflete, se sente triste, mas acho que aí surge o lado da fé, da certeza de que Deus está no controle. Contudo, às vezes a gente pergunta, mas onde está Deus diante dessa pandemia? Claro que a gente sofre diante de tanta dor e sofrimento. Para enfrentar toda essa pandemia só mesmo a fé. Quando você tem fé vem junto a esperança, a esperança de superar”.

Após a entrevista, descontraído, o padre fala que o milagre, a presença de Deus poderia estar no fapEto de cientistas terem conseguido desenvolver vacinas que amenizam o impacto da Covid-19 em tão pouco tempo.

“O objetivo da vacina é tirar a gravidade, evitar mortes. Se pudesse mostrar ao vivo e a cores o que um doente passa aqui dentro, é algo que assusta. Por isso o uso de máscaras, é fundamental, bem como a vacina. É melhor levar uma picada agora do que várias em uma internação”, conta o padre, que recebeu a primeira dose no dia 25 de janeiro.

Para ele, a grande lição que a humanidade vai tirar deste período é a de “que sozinhos não somos ninguém. Que nós dependemos um dos outros e, por isso, a importância da solidariedade. Não adianta eu cuidar de mim e não dos outros. Somos uns responsáveis pelos outros”, contou um padre cioso de seu dever apontando para uma pilha de caixas guardadas na sala ao lado da capelania. Caixas com doações de itens de higiene e chinelos ofertados por paróquias da Arquidiocese de São Paulo.

Comentários

  • SARRAFF

    Boa tarde, excelente reportagem, mostra realmente o trabalho "Voluntário" de nossos agentes da Pastoral da Saúde na atual realidade de nosso país e também como atuávamos antes da pandemia...
    Parabéns pela reportagem.