Minoria cristã resiste na Faixa de Gaza
Reportagem apresenta vida de quem testemunha a fé em Cristo num contexto marcado pelo sofrimento
Era 20 de maio, e a Paróquia Sagrada Família, localizada na Faixa de Gaza, acolhia suas crianças. Eram cerca de 20, bem animadas e barulhentas. Entre toquinhos de giz de cera de toda sorte de cores e papéis prontos para a imaginação de tanta infância reunida, o padre argentino Gabriel Romanelli disfarçava seu temor pelo que acontecia no entorno, a 40 metros dali, segundo ele mesmo. Era mais um dia de bombardeio na Faixa de Gaza.
Em sua rede social, o padre, ao publicar uma foto em que pintava com as crianças naquele dia, escreveu: “Nós durante um bombardeio, entretendo as crianças. Parece surrealismo, mas é algo bem real e necessário. Obrigado a todos que rezam pela justiça e pela paz”
Missionário do Instituto do Verbo Encarnado, uma congregação também argentina, Romanelli está há 25 anos no Oriente Médio, primeiro no Egito, depois na Jordânia, Israel, Palestina e, nos últimos dois anos, na Faixa de Gaza.
“A faixa é uma prisão a céu aberto. Somos cerca de 2 milhões de pessoas vivendo em 350 quilômetros quadrados. A população não pode sair e vive sob o cerco do exército de Israel. Estamos vivendo momentos muito duros, difíceis. Temos bombardeios noite e dia”, revelou o padre.
Desde setembro de 2020, ele trava uma segunda batalha: luta contra um câncer em seu cólon, e passa por tratamento quimioterápico. “O sistema de saúde na Faixa de Gaza é muito pobre e limitado. Durante a guerra contaram, graças a Deus, com a ajuda do Egito para os mais gravemente feridos, mas para o tratamento do câncer há coisas que podem ser feitas e outras não”, disse em entrevista ao site Asia News.
A realidade de quem vive na Faixa de Gaza é caótica: 95% da água disponível é inapropriada para o consumo, a eletricidade, controlada por Israel, é disponibilizada apenas oito horas por dia, 80% da população depende exclusivamente de assistência humanitária para viver e o sistema de saúde é bastante debilitado.
“Agora parece que algumas restrições foram amenizadas, mas ainda há pessoas que precisam de tratamento. Uma senhora da nossa paróquia está com câncer e há muito tempo eles não lhe dão permissão para ir a outros lugares da Palestina, à Jordânia ou a Jerusalém, onde eles têm melhores meios”, destaca o padre Romanelli.
Os ataques que eram ouvidos do salão paroquial, naquele cheio de crianças animadas, eram mais um da série a que Israel submeteu, por 11 dias consecutivos, o povo palestino, a pretexto de atingir o Hamas, grupo político que desde 2007 controla a Faixa de Gaza após vencer as eleições contra o Fatah.
Guerra em números
De acordo com o Escritório do Alto Comissariado de Direitos Humanos das Nações Unidas, durante a última escalada contra Gaza 260 palestinos foram mortos, incluindo 66 crianças. Foi avaliado que 129 das vítimas fatais eram civis e 64 eram membros de grupos armados, enquanto que o status dos 67 restantes não foi determinado. Mais de 2.200 palestinos ficaram feridos durante as hostilidades, incluindo 685 crianças e 480 mulheres, algumas das quais podem sofrer de uma deficiência de longo prazo que requer reabilitação.
No auge da escalada, 113 mil pessoas tiveram de deixar suas casas, deslocando-se em busca de abrigos e proteção nas escolas da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina ou com famílias anfitriãs.
"A maior parte da população cristã palestina vive na diáspora, com números que atingem mais de um milhão de vidas na América Latina e na Europa”. *Zoughbi Zoughbi)
De acordo com o Ministério do Desenvolvimento Social, ainda existem cerca de 8.200 deslocados internos vivendo com famílias anfitriãs ou em acomodações alugadas, principalmente aquelas cujas casas foram destruídas ou danificadas de forma tão severa que se tornaram inabitáveis.
"Se for verificado que o impacto sofrido por civis e seus bens materiais foi indiscriminado e desproporcional, esses ataques podem se constituir crimes de guerra", disse Michelle Bachelet, ex-presidente do Chile, durante uma reunião do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas.
O “cessar-fogo” entre Israel e o Hamas entrou em vigor no dia 20 de maio. O acordo foi possível graças à mediação do Egito, potência regional. E em meio à reconstrução da vida, a minoria cristã observa um conflito — que está sem solução há quase 70 anos — que coloca em risco sua própria existência.
“Rezemos incessantemente para que israelenses e palestinos possam encontrar o caminho do diálogo e do perdão, para serem pacientes construtores de paz e justiça, abrindo-se, passo a passo, a uma esperança comum: uma coexistência entre irmãos. Oremos pelas vítimas, especialmente pelas crianças; oremos pela paz à Rainha da Paz. Ave Maria...”, rezou o papa Francisco em uma de suas homilias ainda em maio deste ano.
A oração, de certo, é a arma da população cristã nos territórios palestinos, atualmente de cerca de 50 mil pessoas, ou 1% das pessoas distribuídas nas cidades de Belém, Ramallah e Jerusalém, além dos residentes na Faixa de Gaza. Do total de cristãos, 48% pertencem à Igreja Ortodoxa Grega, 38% à Igreja Católica e o restante a Igrejas Protestantes, Presbiterianas e Ortodoxas de outros ritos (sírio e armênio).
O futuro da fé, da vida em Gaza
Jeries Michael tem 25 anos e vive em Gaza. Paroquiano na igreja Sagrada Família, ele teme pelo seu futuro e o de sua família. Ele mora com os pais e seus irmãos vivem fora de Gaza. “A situação em Gaza é de muito medo. Vivemos em guerra. Já era difícil e com a pandemia de covid e os últimos ataques ficou tudo pior”, disse o jovem.
Michael contou por telefone e com exclusividade para a Agência SIGNIS que está desempregado, assim como 70% da população na Faixa de Gaza, e passa a maior parte do tempo como voluntário na paróquia ajudando em um projeto com crianças. Michael é um dos jovens líderes da pequena comunidade cristã católica em Gaza, perto dos pontos sagrados de peregrinação, como os lugares onde Jesus nasceu, viveu, pregou e morreu na Cruz.
Os líderes cristãos da região criticam as ações do governo israelense, parte de "uma tentativa, inspirada em uma ideologia extremista, que nega o direito de existir a quem mora em suas próprias casas", disse o bispo católico Pierbattista Pizzaballa, de Jerusalém, em uma declaração recente.
Para Zoughbi Zoughbi, fundador e diretor da Wi’am: The Palestinian Conflict Transformation Center, que vive em Belém, “os cristãos, cuja quantidade não passa de 50 mil na Cisjordânia, em Gaza e em Jerusalém Oriental, tornaram-se uma espécie ameaçada de extinção, representando 1 % da população total de palestinos. Não queremos que nossas igrejas se transformem em museus e modos de vida esquecidos. A maior parte da população cristã palestina vive na diáspora, com números que atingem mais de um milhão de vidas na América Latina e na Europa”.
Zoughbi destaca que a história dos cristãos palestinos é também uma história de muçulmanos palestinos, “juntos em luta conjunta, em que ambos enfrentam a ocupação, dispersão, desilusão e violações dos direitos humanos.”
Em carta aberta, o reverendo Munther Isaac, pastor da Igreja Luterana em Bethlehem e autor do livro The Other Side of the Wall: A Palestinian Christian Narrative of Lament and Hope, diz que apenas apelos por oração não são mais suficientes diante dos conflitos. “Digo isso como um pastor palestino que acredita na oração, dirige serviços de oração pela paz e valoriza genuinamente suas boas intenções. Mas boas intenções não bastam. Em seu Sermão da Montanha, Jesus não disse: ‘Bem-aventuradas as orações pela paz’. Ele disse: ‘Bem-aventurados os pacificadores’ (Mateus 5: 9, ênfase adicionada). Os pacificadores de todas as religiões oram – e eles discernem o que realmente está acontecendo, chamam as coisas por seus nomes e, em seguida, falam a verdade ao poder. É assim que funciona”.
Em sua carta o pastor diz que a pacificação começa com a recusa de que existe um conflito. “Nós palestinos não estamos enfrentando um conflito. Estamos experimentando uma ocupação: uma nação controlando outra; as leis, políticas, práticas e forças armadas de um estado oprimindo o povo de outro, controlando quase todos os aspectos de nossas vidas. Os palestinos em Jerusalém não enfrentam despejos de suas casas. Eles estão passando por uma limpeza étnica, que a ONU (Organização das Nações Unidas) descreveu como "uma política proposital elaborada por um grupo étnico ou religioso para remover por meios violentos e inspiradores de terror a população civil de outro grupo étnico ou religioso de certas áreas geográficas".
Pintando esperança e coragem
Em visita à comunidade cristã que vive em Gaza, em junho deste ano, o Patriarca Pierbattista Pizzaballa viu os prédios em ruínas, visitou a paróquia Sagrada Família e famílias que a compõem. “Aos nossos cristãos, digo, antes de mais nada, ‘vocês não estão sozinhos!’ Estamos aqui, por isso viemos, para expressar nossa proximidade em termos concretos. Em segundo lugar, não perca a coragem. Tenho notado fadiga; as feridas da guerra ainda estão abertas, principalmente as psicológicas. Percebi que a palavra 'trauma' é usada com frequência, algo que eu não tinha ouvido antes. Um trauma muito forte. Portanto, não perca a coragem, não perca a esperança", registrou ao Christian Media Center, que cobre o cotidiano dos cristãos na Terra Santa
É de esperança que padre Gabriel Romanelli, Jeries Michael e o povo de fé que vive em Gaza se munem. Oração e resistência se misturam para que o futuro possa ser pintado por crianças com todas as cores a que uma infância tem direito.
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