Elas e eles se fizeram pobres com os pobres
Na contramão da ausência de muitos representantes do poder público, a matéria a seguir coloca em evidência a atuação política de religiosos e religiosas em favor dos socialmente mais vulneráveis
Quem conhece a história do Brasil sabe bem o papel dos religiosos e religiosas na defesa dos direitos dos mais pobres e perseguidos deste país. Nomes como Frei Tito, Irmã Dorothy Stang, Pe. Ezequiel Ramin, Irmã Dulce - esta já elevada aos altares como santa - e tantos outros e outras se destacam em um universo muito maior.
É no trabalho discreto e silencioso que homens e mulheres, especialmente elas, se dedicam aos mais vulneráveis, migrantes, refugiados, sem-teto e terra, sem família, educação, saúde, dignidade... e a lista da ausência de direitos no país parece não parar de crescer.
É nesse cenário que a 6ª Semana Social Brasileira, ao lado da Conferência dos Religiosos Brasil (CRB), regional Brasília (DF), se reuniu no último sábado, 7, de forma virtual para apresentar a realidade de algumas periferias do Distrito Federal e de Goiás, observando o trabalho na defesa de terra, teto e trabalho. Nos tempos de pandemia, a presença das religiosas foi e é fundamental.
Foi assim na favela Sol Nascente, a 35 quilômetros da Praça dos Três Poderes. Ali, em uma total ausência de políticas públicas, Irmã Marly Quermes, missionária de Jesus Crucificado, da Comunidade Maria Villac, e Neide Xavier, liderança comunitária, contam a dura realidade que o povo enfrenta. Realidade que piorou durante a pandemia.
Ruas de terra batida, barracos de madeira, falta de saneamento básico e, portanto, falta de água, de posto de saúde. “Aqui, quando chove, nós somos cobertos por água e lama, e quando não chove somos cobertos por poeira. Neste momento da pandemia, tivemos que suspender todas as atividades – fazemos um trabalho com crianças que foram abusadas sexualmente e mulheres que sofrem violência doméstica, além de abuso”.
Antes da pandemia, irmã Marlye a comunidade realizavam atividades como os Círculos Bíblicos, que eram também espaço de reflexão sobre a realidade que estavam vivendo, além do Cine Fórum Rua. “Onde tem as bocas [de drogas] também tem uma proposta diferenciada, além das aulas de reforço e alfabetização”.
Com a chegada da pandemia foi preciso matar a fome, oferecer água e alimento. “Quando se fala 'tem que lavar as mãos', pergunto como, se não tem água todos os dias. Fala-se para usar álcool em gel, mas como uma família aqui, por exemplo, que tem 16 pessoas e uma renda de R$ 300 e poucos faz isso?”, questiona irmã Marly.
“Eu quero ver acontecer. Um sonho bom, sonho de muitas, acontecer”, finalizou Irmã Francinete, cantando e com um sorriso danado de bonito.
Com a Campanha Solidária iniciada pelas religiosas e lideranças comunitárias na favela do Sol Nascente, apoiada também pela CRB de Brasília, foi possível arrecadar e distribuir cerca de 10 toneladas de alimentos, alcançando 1.002 famílias também com atendimento para acessar o auxílio emergencial.
“Era grito de fome. Naquele momento sentimos que a Igreja, enquanto leiga ou missionária, precisava sair. A CRB abraçou essa campanha e hoje aqui no Sol Nascente nós somos as pernas e os pés das congregações, da vida religiosa que não pode estar aqui. Chegamos enquanto vida religiosa”, avalia a irmã Marly Quermes.
Para Neide Xavier, liderança comunitária da Sol Nascente, a presença das irmãs foi imprescindível nas famílias. “Um trabalho muito grandioso, porque é a necessidade do povo. Por conta desse vírus vimos pessoas pedindo socorro. Atingimos mais de mil famílias, inclusive aquelas em que há entre sete e dez filhos nas casas. O alimento veio saciar a fome mesmo, e essa ajuda que nós tivemos, esse trabalho humanitário é de tirar o chapéu”.
Ainda segundo irmã Marly, chegou um dado momento em que as famílias só tinham uma máscara. “Vi um tirando do rosto e colocando no outro para poder sair de casa. Essa coisa do álcool em gel, da máscara é ilusão, não é para todos”, desabafa a religiosa, que presenciou cenas desoladoras. “Chegou um momento que as famílias nos procuravam para saber se podiam trocar a cesta básica pelo caixão, então assim trocar comida por um caixão. Fizemos campanhas para comprar caixão”.
“Trazem uma realidade que, para além de ser violenta, é desumana. Já estive na comunidade e realmente a presença e a escuta são primordiais e prioridade na ação de vocês. Não é a congregação que é o centro, mas o povo. Esse relato das pessoas pelo direito de poderem enterrar seus entes é uma denúncia”, avalia Alessandra Martins, da Secretaria Executiva da 6ª Semana Social Brasileira.
Luta por saúde
De Águas de Lindas, em Goiás, surge o exemplo de irmã Francinete Amorim e de suas irmãs missionárias capuchinhas, que de dentro da cidade dormitório de cerca de 300 mil habitantes passaram a olhar para a realidade das famílias. “Os adultos saem cedo para seus trabalhos entre 4h, 5h e retornam entre 20h, 21h [...] Assim nos lançamos buscando as crianças que viviam sozinhas, os idosos, e criamos espaços de alfabetização, trabalhos com música, lazer, encontro catequético e formação bíblica através dos encontros da Campanha da Fraternidade (CF).
Destaca-se ainda a Casa de Saúde Popular Flor do Cerrado, que trabalha com a saúde utilizando o método bionergético. “Fazemos a prevenção e o tratamento. Muitas mulheres vêm para o trabalho voluntário para embalarmos as ervas. Hoje trabalhamos com as terapias comunitárias de encontro”, conta irmã Francinete.
Mas o trabalho se estende também às famílias que têm casos de dependentes químicos e outras dependências através da metodologia do amor exigente. Há também o trabalho com a Pastoral da aids, que orienta sobre prevenção e busca por tratamento.
“Nós trabalhamos com formação para a saúde, para a vida das mulheres. Atualmente, uma terapeuta nossa entrou em “mandata” coletiva porque acreditamos na participação popular e vivemos sonhando e cantando. “Eu quero ver acontecer. Um sonho bom, sonho de muitas, acontecer”, finalizou Irmã Francinete, cantando e com um sorriso danado de bonito.
Maria Joaquina, uma das frequentadoras da Casa de Saúde Popular Flor do Cerrado, fala da importância do trabalho das religiosas. “Conheço as irmãs desde 2008, então são 12 anos de convivência. Elas foram me visitar e aquilo é a parte mais importante. Elas são presença, elas cuidam, desde um pãozinho com sementes até ir a sua casa acompanhar as suas dores, então eu sou muito grata”.
Alessandra Martins, mediadora do encontro virtual e secretaria execeutiva da 6ª SSB, destacou também que da região do Guará e do entorno do Distrito Federal surge o exemplo das irmãs missionárias rogacionistas, que realizam atendimento direto a mais de 350 crianças, jovens e adolescentes na linha da educação, levando alimento às famílias e atuando também com pessoas em situação de rua e com os catadores de resíduos.
Cenário de crise, mas também de esperança em mutirão
A deputada distrital Arlete Sampaio (PT), que historicamente tem uma ligação próxima às comunidades, participou do encontro e como autoridade pública fez uma análise do atual momento que o país atravessa. “Vemos claramente as dificuldades que o nosso povo está vivendo em função de estarmos em um momento de muitos retrocessos. [...] Infelizmente, no quesito terra, o que vemos é uma série de assassinatos de lideranças de trabalhadores rurais e retrocesso na política de reforma agrária, inclusive um desmonte do Incra e o encerramento do trabalho do desenvolvimento agrário”.
Sobre o trabalho, a deputada lembrou que, em 2014, o Brasil atingia o menor nível de desemprego: 4,6%. “Hoje 14% da população está desempregada e não temos nenhuma proposta clara do governo de uma política de desenvolvimento para gerar emprego para o nosso povo. Quando a gente fala de teto, tínhamos a experiência do Minha Casa Minha Vida, que construía casa popular para o povo [...]. Esse programa também está sendo desmontado”.
“Não existe outro caminho a não ser o do papa Francisco, de ir para a rua e ensaiar novos gestos de compromisso com os mais pobres”. (Irmã Sueli Bellato)
Para a deputada, o Brasil permanecerá em crise, que agora segue agravada pela pandemia. “Eles resolveram aumentar no Senado a Independência do Banco Central. O governo Temer, que foi o beneficiário do golpe [impeachment de Dilma Rousseff], fez a reforma trabalhista tirando direitos e jogando o povo na informalidade. Essas pessoas não têm qualquer direito. São os trabalhadores mais explorados do país”, avalia a deputada, que, no entanto, nutre sua esperança no cenário político internacional e na atuação da Igreja Católica.
“Nós precisamos muito Igreja comprometida com os pobres, a Igreja do papa Francisco. É dela que precisamos nesse momento, que seja capaz de refletir sobre a realidade e contribuir para que nós possamos transformar essa realidade. [...] Construir alternativas de reconstrução de um projeto que seja capaz de reduzir desigualdade social, de fazer transferência de renda, de incluir o nosso povo, de assegurar os direitos, a dignidade humana de todas as pessoas que moram no nosso país”, disse a deputada, afirmando sua felicidade com a derrota de Donald Trump à presidência dos EUA.
“O governo Bolsonaro não tem mais esse apoio internacional e espero que o Biden saiba tratá-lo muito bem, porque nenhum governo que governa contra o povo tem condições de subsistir. Precisamos que a soberania popular volte a ser ouvida”, concluiu.
Participando do encontro virtual, dom José Valdeci Santos Mendes, bispo de Brejo (MA) e presidente da Comissão Episcopal Pastoral para a Ação Sociotransfomadora da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), destacou a importância do testemunho da Igreja e da presença das religiosas na vida do povo. Presença essa que é motivada pelas mesmas diretrizes das Semanas Sociais Brasileiras: mutirão pela transformação sociopolítica com o protagonismo dos leigos e das leigas a partir de uma análise da realidade sociopolítica e econômica, do posicionamento político da Igreja de suas ações concretas.
Não por acaso essa é a 6ª Semana Social, uma resposta do povo aos desafios e ataques que o Estado Brasileiro apresenta à sua população que luta por vida em dignidade, por terra, teto e trabalho.
“O mutirão é exatamente construir junto, trabalhar junto, por isso toda essa mobilização para dizer que é uma luta de todos nós. Nós destacamos esses três Ts que chamamos de eixos estruturais: a democracia que sonhamos, a economia popular que em primeiro lugar visa ao povo e a soberania alimentar. Precisamos ter consciência da realidade que estamos enfrentando e ao mesmo tempo buscar alternativas”, disse o bispo.
Irmã Sueli Bellato, cônega de Santo Agostinho, afirmou que as experiências apresentadas pelas demais religiosas são como um pequeno laboratório do muito do que a vida faz e do que muito que gostaria de fazer. Sentimento de gratidão e acolhida. “Não existe outro caminho a não ser o do papa Francisco, de ir para a rua e ensaiar novos gestos de compromisso com os mais pobres”.
Não por acaso, o encontro virtual começou com a canção Pai Nosso dos Mártires, uma composição de Cirineu Kuhn, missionário verbita, interpretada por artistas de todo o país. Um mutirão de beleza para renovar o compromisso e a fé com os mais pobres, os preferidos de Jesus Cristo.
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